Opinião: Agricultura de proximidade e soberania alimentar

Texto de opinião por: António Malheiro  

Agricultor Sénior - Freixiel -Vila Flor

O cenário de uma crise alimentar global no mundo é cada vez mais preocupante.

À crise dos cereais, dos fertilizantes e da energia, decorrente da guerra na Ucrânia, irá, previsivelmente, acrescer o reajustamento da política agrícola brasileira, decorrente da mudança de governo saído das últimas eleições. Compatibilizar a produção de alimentos com a sustentabilidade irá, seguramente, gerar atritos com o poderoso lóbi agroalimentar que acabará por contaminar os mercados.

A pandemia e a invasão da Ucrânia vieram pôr a descoberto a fragilidade da Europa, na generalidade dos eixos estruturantes da economia globalizada – energia, componentes tecnológicos de assemblagem, recursos humanos, commodities em geral, defesa e, pasme-se, bens alimentares, que têm sido um dos pilares da construção da União Europeia.

Uma Europa rica em valores humanistas, que exporta a granel risonhas primaveras para os países árabes e recebe, como forma de pagamento, multidões famintas. No entanto, uma Europa cada vez mais distante dos centros de decisões económicas, financeiras e militares.

A Política Agrícola Comum (PAC), que em 2022 assinala o seu 60.º aniversário, constituiu-se com o objetivo de alimentar os europeus no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Este objetivo mantém-se e deveria mesmo ser reforçado e atualizado, com foco na soberania alimentar dos Estados-membros e das alterações climáticas. A autonomia energética e produção de bens alimentares são fatores críticos, que teremos de incorporar no modelo social e económico que queremos seguir:

  • agricultura globalizada intensiva, de grande distribuição, transgénica com forte incrementação logística que tem vindo a fazer caminho. Um modelo capitalista e monopolista;
  • agricultura de proximidade tradicional, mais próxima da natureza, que assegura a ocupação do território e a vitalidade das zonas rurais, em íntima ligação com outras atividades, desde o turismo ao artesanato e que promove a gestão ativa do território. Um modelo idílico promovido por uma minoria crescente de população

Não podemos ter sol na eira e chuva no nabal. Temos então de procurar encontrar o melhor de dois mundos.

Em 2018, Portugal aprovou o Estatuto da Agricultura Familiar que, na sua matriz conceptual, releva a importância económica da agricultura tradicional como âncora do desenvolvimento regional, da sustentabilidade, da biodiversidade e fixação das populações. Porém, o modelo não fez caminho por várias razões. Uma delas é a figura jurídica societária1 destas empresas familiares, que por imperativo administrativo do quadro comunitário, mais parece um instrumento paliativo para desvalidos familiares. Acabam-se os fundos, acaba o negócio. Isto se, entretanto, o filho, o tio ou o sobrinho, acionistas e trabalhadores, não tiverem emigrado para a Suíça!

É expectável e desejável que o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum 2023/27 (PEPAC) coloque ênfase no primado da produção de bens alimentares, desenvolvimento das regiões, soberania alimentar e sustentabilidade. A que se podia chamar de agricultura de proximidade (não familiar, modelo saloio esgotado) deve ter como foco o mercado, o rendimento das explorações agrícolas e a valorização dos recursos endógenos das regiões, em ligação com outras atividades que potenciem a atração e fixação das populações no interior – e até mesmo atraia os nómadas digitais, já que os nómadas golden procuram outras paragens.

Não é, seguramente, dando mais dinheiro às empresas familiares, nem a taxar os lucros das grandes superfícies, que se promove a agricultura de proximidade. A sua promoção faz-se criando condições que sejam facilitadoras da produção e comercialização, tais como:

  • simplificar procedimentos fiscais de venda e transporte de mercadorias dentro da região;
  • condicionar a abertura no interior de lojas afiliadas das grandes superfícies, impondo ou premiado o abastecimento local;
  • apoiar a produção de energia para o autoconsumo;
  • promover os mercados semanais e a agricultura biológica nas cidades e vilas;
  • complementaridade logística com organização de produtores;
  • fomentar o aparecimento de pequenas e médias empresas na agroindústria, que se articulem com os produtores de uma região e sejam âncora identitária de diferenciação e qualidade de produtos locais.

Recordo aqui e presto homenagem aos fundadores da marca Nordeste no Cachão, em Mirandela. Um exemplo de como se poderia obter escala numa agricultura de minifúndio.

Seguramente que a agricultura de proximidade não fará de Portugal um player da geopolítica agroalimentar mundial, mas também não se pode aceitar que, por causa da Rússia e a Ucrânia andarem à batatada, nos faltem as cenouras! 

1 O título de reconhecimento do Estatuto da Agricultura Familiar é atribuído ao responsável da exploração agrícola familiar que satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos: (1) idade superior a 18 anos; (2) rendimento coletável do agregado familiar, por sujeito passivo, inferior ou igual ao valor enquadrável no 4.º escalão do imposto do rendimento de pessoas singulares, ou seja, 19.696€ (em 2022); (3) rendimento da atividade agrícola igual ou superior a 20% do total do rendimento coletável; (4) receba um montante de apoio relativo ao Regime de Pagamento Base e do Regime da Pequena Agricultura, decorrente das ajudas da PAC, não superior a 5.000€; (5) mão-de-obra familiar igual ou superior a 50% do total de mão de obra estimada para a exploração; (6) titular de exploração agrícola familiar, que se situe em prédios rústicos ou mistos, identificados no sistema de identificação parcelar do IFAP, IP.

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