A Produção de Quimeras no Reino das Plantas

A Produção de Quimeras no Reino das Plantas

Por: Luís Franco, , Arboricultor de ornamentais

Fruto da cópula entre a ninfa Equidna, metade mulher e metade serpente, e o gigante Tifão, pai dos ventos ferozes e violentos, Quimera foi uma criatura com corpo de leão, cabeças de leão e de cabra e cauda de serpente, que espalhou através do fogo cuspido o terror nas aldeias dos reinos de Cária e de Lídia até ser travada num só golpe por Belerofonte, o cavaleiro de Pégaso.

Fera monstruosa mas fascinante, a Quimera foi uma figura mítica que trouxe para o imaginário popular e disseminou num sentido lato a conotação de algo único, fantástico e fruto da imaginação. Fabulosa, mas amplamente corporizada na literatura, na pintura e na escultura, tendo sido mobilizada para as funções de guarda dos templos cristãos.

Na profundidade dos mares oceânicos podem ser encontrados, embora com muita dificuldade, os Chondrichthyes, ou os peixes cartilaginosos, cartilagíneos ou seláceos da classe Holocephali (do grego holo, todo e cephalo, cabeça) com uma única ordem, a Chimaeriforme, uma única família, a Chimaeridae e um único género, o dos Hydrolagus, ou peixes-quimera. A nomenclatura deveu-se exclusivamente ao aspecto visual impressionante de qualquer uma das cerca de trinta espécies, até ao momento, localizadas e identificadas.

No entanto, as quimeras, para além dos peixes bizarros, de vários séculos de presença na arte e no imaginário, são algo natural que longe fica de corresponder à figura mítica grega e que têm acompanhado a evolução da vida. O estimado leitor enquanto lê estas linhas e coça, intrigado, uma sobrancelha, poderá ser um contemplado da natureza ou da ciência de tão extraordinário fenómeno que o possibilita também ser uma quimera, em que os tecidos da pele dos dedos e dos fios da sobrancelha tenham material genético diferente!

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As quimeras têm correspondência com a biodiversidade na evolução provocada por mutações génicas e cromossómicas. A biodiversidade resultou e resulta da variabilidade das espécies. As quimeras são um resultado final da mutação das células que tanto podem ter como não (embora muito raramente), continuidade na reprodução sexuada.

As mutações são alterações que ocorrem nos genes ou nos cromossomas e provocam variações hereditárias ou mudanças no fenótipo. Podem ser espontâneas, devido a anomalias  na duplicação do ADN, nos processos de meiose e mitose ou no emparelhamento das bases nucleótidas, ou então induzidas pela exposição a agentes patogénicos naturais, através de radiações, ou artificiais, por substâncias químicas. Se forem génicas, são modificações na sequência de nucleótidos do ADN, por substituição, inserção ou deleção de bases; a molécula de RNAm transcrita a partir do ADN, caso seja alterada, repercutir-se-á na proteína produzida e originará efeitos no fenótipo. Se forem cromossómicas, são alterações na estrutura, por deleção, duplicação, translocação e inversão, ou então no número, por euploidia ou aneuploidia; podem atingir uma determinada parte, a totalidade e/ou até todo o complexo cromossómico. Ocorrem nas células somáticas durante a replicação do ADN e antes da divisão mitótica; as células descendentes são afectadas e podem localizar-se apenas numa parte do corpo, mas não são transmitidas à descendência, como a origem de vários cancros. Se ocorrerem nas células germinativas, durante a replicação do ADN e antes da meiose, os gâmetas são afectados, assim como todas as células descendentes após a fecundação, pelo que as mutações são transmitidas à descendência.

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As quimeras são resultados das mutações celulares que tanto poderão produzir efeitos no genótipo e no fenótipo, como apenas no primeiro. Por exemplo, o mosaicismo é uma variação do número de cromossomas que origina um indivíduo com dois ou mais materiais genéticos diferentes, mas provenientes do mesmo zigoto, sendo um “cocktail” celular que poderá ser transmitido mas não exibido no fenótipo. Já tal ocorre sempre na hibridação; as mulas ou bardotos, zebralos ou zebrasnos, ligres ou tigreões, chabinos e beerfalos e os chibéus que qualquer criador de pássaros curioso já deverá ter tentado reproduzir são resultados do cruzamento genético entre duas espécies distintas com efeitos claramente visíveis no fenótipo, sem descendência devido a incompatibilidade, mas que não são, do ponto de vista técnico, quimeras, porque não têm materiais genéticos de zigotos diferentes.

Lydia Kay Fairchild, cidadã norte-americana, despertou para a opinião pública, no ano de 2002, a pertinência biológica, social e jurídica do quimerismo. Sendo extremamente rara e pouco conhecida a ocorrência nos humanos, no caso de Lydia Fairchild originou a perplexidade de quem testemunhou os partos dos seus filhos não pôde ajudar a comprovar a maternidade. Sendo caucasóide e o pai das crianças negróide, a mestiçagem da prole deveria exprimir fortes indícios quanto à paternidade e maternidade. O problema surgiu pelos factos de Lydia Fairchild ser mãe solteira e não ter tido suficiência económica para sustentar os filhos. Na sequência do pedido de apoio social estatal, foram realizados testes de ADN ao suposto pai, Jamie Townsend, e à mãe. Os testes confirmaram a paternidade mas afastaram a maternidade e a perda da custódia dos filhos. Não produzindo efeitos legais os testemunhos e as impressões dos pés dos recém-nascidos, foram realizados testes complementares à família da progenitora e para complicar ainda mais o problema, a ciência determinou, com a probabilidade clássica de 99,9%, que as crianças tinham 50% de ADN do progenitor e os restantes 50% eram uma combinação da dos pais da suposta mãe. Lydia Fairchild tinha no seu corpo material genético coincidente com os pais e os filhos em várias células, mas não nas germinativas. O fenómeno ocorreu por causa da fecundação de dois zigotos que em vez de terem dado origem a gémeos, deram lugar a um único feto composto por dois códigos genéticos distintos.

Células indecisas, em vez de serem eliminadas ou absorvidas pela fusão, tornaram-se vizinhas das restantes, transmitiram ADN extra e fizeram do portador uma quimera.

Karen Keegan, outra cidadã norte-americana, defrontou-se com o mesmo problema. Em 1998, precisou do transplante de um rim. Foi testada nos seus familiares a compatibilidade, por análises sanguíneas, e o resultado foi também surpreendente porque nos resultados iniciais dos testes do ADN dos três filhos, o mesmo apenas coincidiu com o do mais novo. Ou seja, mais uma mãe, que aparentemente não era mãe biológica. Resultados complementares, comprovaram que o ADN da pele, cabelo e bexiga já era compatível com o ADN dos outros dois filhos. Tinha um corpo quimérico com células do sangue proveniente de um embrião e células dos tecidos do outro. Os transplantes, ao permitirem a introdução de material genético diferente do dador também tornam o portador uma quimera, apenas com a diferença de ser artificial.

Mas nos humanos (e também possível em todos os restantes animais) a anomalia quimérica mais conhecida é o hermafroditismo. Dois óvulos fertilizados que deveriam originar gémeos sendo um homem e o outro uma mulher, fundem-se num único indivíduo que geneticamente tem os dois géneros, tecidos ováricos e testiculares, ambos os genitais externos e fisionomia tanto de homem como de mulher.

O ano de 2012 nasceu e nos primeiros dias surgiu a notícia, publicada na prestigiada revista norte-americana Cell, das quimeras de macacos rhésus, uma combinação das células de seis embriões diferentes, realizada pelo Centro Nacional de Oregon para a Investigação de Primatas, da Universidade de Ciência e Saúde de Oregon, Estados Unidos da América. Os pequenos Rex e Hoku, ainda estão por crescer para nós sabermos que material genético poderão transmitir aos descendentes, caso sejam férteis. Mas as questões éticas aparecerão antes e já vão muito além da “mera” clonagem. Depois do sucesso inicial nos primatas, já poucos segredos existirão para a obtenção de uma nova raça humana que um ditador louco almejou conseguir no século passado, sem pretender deixar espaço no planeta para a diversidade ou diferença. E já são desejadas experiências em embriões humanos…

Para os produtores de animais é interessante que uma vaca possa produzir mais leite e carne, que uma ovelha ou cabra possam ser cada vez maiores, produzam muito pelo e fiquem dotadas de peles com qualidade extra, e até que os frangos percam as asas para terem umas coxas maiores, porque tudo isso trará proveitos, e o sucesso estará sempre dependente dos mesmos. As mutações celulares e a obtenção de quimeras (como preciosidades) serão meios importantes. Os resultados deixam e deixarão de precisar da intervenção divina e celestial ou do mero acaso, e apenas precisarão da Ciência.

A complexidade genética no reino animal também tem correspondência no vegetal. No último existe menos conhecimento científico derivado da ausência de interesse e de investimento na investigação. No entanto a explanação serve para demonstrar a potencialidade infinita da obtenção de quimeras. A grande diferença ocorre na reprodução, que de forma assexuada permite mais facilmente eternizar, valorizar e obter proveitos rápidos dos resultados.

Se a couve original seria actualmente intragável para o nosso palato, de tal depreende-se que ocorreram mutações celulares que alteraram as características iniciais. Tal não quer dizer que a couve-penca da Póvoa seja uma quimera do ponto de vista técnico, mas apenas um cultivar, pois é uma variedade cultivada com transmissão seminal estável e invariável. E assim se sucede com a maioria das espécies mutadas. As quimeras no reino das plantas têm, na generalidade, o mesmo significado do imaginário popular de algo único e valioso.

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O produtor de plantas e árvores não precisa de ler este texto, nem precisou de ler outros do género para compreender a importância comercial da variabilidade e do aparecimento e aproveitamento de quimeras. O interesse dos clientes foi suficiente. Pela prática, se através da propagação seminal, as plantas ou árvores não apresentam as mutações, a técnica é substituída pela estaquia e enxertia ou até pela micropropagação. No entanto, não deixa de ser importante o conhecimento técnico para a continuidade da obtenção de mais quimeras.

No reino das Plantas as mutações podem ser periclinais se o conjunto de células com composição genética diferente estiver localizado em todo o meristema apical; as células produzidas pela divisão mitótica têm a mesma mutação, ocorrendo sempre no desenvolvimento da planta, geralmente estável e propagável.

Serão mericlinais ou sectoriais se apenas surgirem mutações parciais da cúpula apical, podendo originar alterações numa porção ou num conjunto de folhas; por darem origem a brotos e folhas imutadas, a viabilidade e a propagação são imprevisíveis por dependerem do ponto de desenvolvimento no meristema apical. Ou seja, a continuidade da produção das quimeras apenas é garantida na propagação se as mutações forem periclinais.

O ápice meristemático tem duas camadas de células pluripotentes, designadas L1 e L2.  A camada L1 (na epiderme) origina os tecidos epidérmicos e a camada L2 os restantes tecidos. Se a mutação ou combinações de dois ou mais materiais genéticos diferentes apenas ocorrer na camada L1 somente afectará a planta e não ocorrerá transmissão na reprodução sexuada porque os tecidos dos órgãos genitais são formados a partir da camada L2. Tal explica a ausência de transmissão da maioria das mutações na descendência através da propagação seminal e a necessidade do recurso à clonagem caso seja pretendida a continuidade das caraterísticas resultantes das mutações.

Recapitulando, as quimeras são resultados das mutações celulares de materiais genéticos provenientes de mais que um zigoto. No reino das plantas a fecundação ocorre quando os grãos de pólen penetram o estigma do sistema reprodutor, e formam o tubo polínico sobre o estilete até fecundarem o ovário. Tanto na polinização directa como na cruzada, é possível a transmissão de vários materiais genéticos. Se após a fecundação em vez de se formar uma semente com dois embriões, mas apenas uma com um, composto por materiais genéticos dos dois, germinará uma planta quimérica.

Os produtores de plantas e árvores, têm na generalidade, breves conhecimentos e experiência de mutações, que em traços gerais são espontâneas nos cultivares, induzidas em fenómenos como a variegação (ausência de clorofila em partes dos tecidos) e, obviamente, artificiais nos OGM. As híbridas podem surgir a partir de qualquer uma das formas. Os comerciantes publicitam como quimeras os resultados de produtos novos em que as plantas e árvores são mais bonitas e têm cores novas, ou produtoras de melhores frutos, ou mais resistentes a pragas e doenças, ou mais fáceis de manear. Muito e bem, é e tem de ser o lema de quem produz e de quem vende. E é compreensível que pouco interesse a classificação técnica ou científica, mas sim que a utilização das quimeras como resultados interessantes de mutações genéticas possa ajudar à concretização dos objectivos.  

Parafraseando uma dissertação de Bernardo Madeira, o ser humano actual ainda não perdeu todos os instintos básicos e evolutivos. Os homens continuam a querer ser, no seu habitat, o macho Alfa e nunca pararam de aprimorar a habilidade de caçar. Se nos primórdios se moviam pela sobrevivência, necessidade de comida e obtenção das melhores fêmeas para assegurar uma boa transmissão dos genes, na actualidade os procedimentos apenas divergem na forma.

O produtor de plantas e árvores que evolua das práticas de subsistência para a agricultura de excelência, que aposte na qualidade e diferenciação, que maximize os recursos disponíveis, que consiga redesenhar o mercado através de tendências e modas para dele fazer parte, e tenha capacidade para obter, multiplicar e comercializar quimeras, tornar-se-á obviamente num bom caçador dos tempos modernos da economia global. Caçador de oportunidades, negócios, clientes, sucessos e proveitos financeiros.
Num momento socioeconómico delicado e perante um atraso que não aparenta recuperação possível e reduz a esperança, o produtor nacional depara-se com o problema de que já não haja muito mais para caçar no seu meio e que a únicas soluções talvez sejam desistir ou procurar outros meios onde tal aconteça, mas poderá nunca alcançar o estatuto de macho Alfa e até nem ser bem aceite no novo meio. O segredo do sucesso reside apenas em ter a habilidade necessária e capacidades para conseguir caçar onde e o que os outros não conseguem.

O quimerismo é um tema pouco divulgado em Portugal, em português, e que merece mais estudo. Caso o estimado leitor detenha mais informações e as queira disponibilizar, desde já agradeço o envio para:

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