Quando a missão do colostro falha

Por: George Stilwell1 e Margarida Arede2
1(FMV-UTL) Médico-veterinário, Diplom. ECBHM,
2Estudante estagiária, Faculdade de Medicina Veterinária – Universidade Técnica de Lisboa

No primeiro artigo que escrevi para esta excelente revista enumerei algumas regras que são essenciais para que o colostro cumpra com sucesso a sua missão, que é a de proteger o vitelo recém-nascido até que o seu próprio sistema imunitário ganhe maturidade suficiente para o fazer. Neste número pretendo refletir sobre as consequências, para o animal e para a exploração, que resultam de não cumprir esses preceitos.

A razão para atacar o assunto mais uma vez tem a ver com dois acontecimentos – a conclusão de um nosso estudo que correlacionou o maneio no periparto da vaca leiteira em explorações diferentes com a mortalidade de vitelos; e a constatação que muitos produtores de leite continuam a dar imensa importância a algumas das regras, mas a desprezar completamente algumas das outras. Um dos conceitos imprescindíveis para se retirar todas as vantagens do colostro é que a falha numa das regras pode tornar ineficiente todo o restante programa.

Primeiro umas breves palavras recordando a razão porque se sublinha tanto a necessidade de um perfeito maneio do colostro – a placenta dos bovinos é do tipo corioalantóica o que, em termos muito simples, significa que não deixa grandes moléculas passar do sangue da mãe para o do feto. Entre essas grandes moléculas estão as imunoglobulinas, essenciais à proteção do animal contra agentes infeciosos. O que isto quer dizer é que o bovino recém-nascido, apesar de ter um sistema imunitário competente, está à mercê das bactérias e vírus que o invadem, antes de ter tempo de montar as suas defesas. A esta resistência provida pelo colostro chama-se “imunidade de origem materna” ou “imunidade passiva”.

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Então agora falemos dos efeitos, a curto e a longo prazo, da falha na transferência da imunidade passiva.

No nosso estudo (ver: Margarida Arede, dissertação FMV-UTL) foram comparadas dez explorações do sul de Inglaterra e da Califórnia. Em cada exploração foi efetuada a medição da proteína total (PT), através de um refratómetro, no sangue de 12 vitelos com dois a sete dias de idade. De seguida foram recolhidos elementos de cada exploração sobre o maneio do periparto e a incidência de doenças e mortalidade de vitelos até às 3 semanas de vida.

Verificou-se a existência de uma correlação positiva entre baixos valores de PT e a taxa de mortalidade de vitelos nas explorações em estudo. Estes dados corroboram o que a literatura refere – mais de 1/3 da mortalidade de vitelos até aos 21 dias de vida se deve a falha de transferência passiva. Nas explorações da Califórnia observou-se 16,7% de baixa PT a que correspondeu uma taxa de mortalidade de 3,7%, enquanto que em Inglaterra a média de valores baixos de PT foi de 47,2% e a média de mortalidade foi de 5,5%.

De seguida tentámos perceber o que poderia estar a correr mal nas explorações com elevado índice de falha de transferência de imunidade e descobrimos que aquelas que retiravam o vitelo da maternidade antes das 6 horas de vida, entre as 6 e as 12 horas de vida ou após as 12 horas pós-parto apresentaram uma média de valores insuficientes de PT de 28,34%, 38,9% e 45,9%, respetivamente. De certa forma relacionado com este fator, observou-se também que as explorações que permitiam que o vitelo mamasse o colostro diretamente da mãe apresentaram baixos valores de PT em 53,3% dos animais, enquanto que as explorações que não permitiam que o vitelo mamasse o colostro da mãe, mas ofereciam-no por tetina ou entubação, apresentaram apenas 16,7%. Isto é sugestivo de que quando o vitelo permanece mais tempo na maternidade e se permite que este mame o colostro diretamente da mãe, há maior probabilidade de ocorrer um aumento da taxa de falha de imunidade passiva e por isso de mortalidade. Isso pode dever-se à ingestão insuficiente ou retardada de colostro, à ingestão de colostro de má qualidade, à contaminação do vitelo em maternidades sujas ou por mamarem em tetos de vacas pouco limpos. Está comprovado que um aumento da carga bacteriana intestinal reduz a eficácia na absorção de imunoglobulinas.

No nosso estudo comprovou-se ainda que nas explorações em que os vitelos ingeriram colostro antes das 4 horas de vida, a percentagem de animais com baixos valores de PT foi de 23,8% enquanto que nas explorações nas quais os vitelos receberam a primeira administração de colostro entre as 4 e as 9 horas a média de FTP foi de 61,1%.

Uma outra importante descoberta do nosso estudo foi que aquelas explorações em que era fornecido aos vitelos suplementos comerciais do colostro, destinados a reforçar a ação protectiva deste, eram aquelas que apresentavam níveis mais baixos de PT medidas pelo refratómetro. Este é um resultado aparentemente surpreendente, mas cuja análise permite tirar uma importante conclusão – os suplementos de colostro são essencialmente usados por aqueles que falham em partes importantes do maneio do colostro. Ou seja, podemos aprender duas coisas: que a oferta destes produtos tenta colmatar ou disfarçar más práticas; e que, independentemente da qualidade dos suplementos, não há nada que substitua um bom colostro administrado adequadamente.

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Como referíamos no início, os efeitos negativos da falha de transferência da imunidade de origem materna fazem-se sentir até muito tarde na vida do vitelo. Por exemplo, num outro estudo que efetuámos, confirmámos que 37% dos vitelos (< 15 dias de idade) que chegavam a uma engorda não apresentavam níveis protetores de imunoglobulinas. Neste grupo de animais os níveis de doença respiratória e de mortalidade foram significativamente maiores até aos 2 meses de idade.

Outros trabalhos publicados têm demonstrado que as vitelas com insuficiente absorção de imunoglobulinas colostrais, crescem mais lentamente, têm 3 vezes maior probabilidade de fazerem pneumonia até aos 6 meses, fazem o primeiro cio mais tarde, têm o primeiro parto dois a três meses depois e apresentam maior incidência de partos difíceis (provavelmente por insuficiente desenvolvimento do canal pélvico), quando comparadas com as vitelas com níveis elevados de imunoglobulinas.

Está portanto perfeitamente estabelecido que um deficiente maneio do colostro tem um enorme impacto sobre a saúde e bem-estar dos bovinos até uma idade avançada. Este impacto obviamente que também se reflete no rendimento da exploração e portanto no bem-estar do produtor. No entanto, apesar destes factos serem reconhecidos por todos, continua a surgir um significativo número de animais com falhas de imunidade. Se se tratasse de uma doença ou prática cuja resolução envolvesse grandes investimentos, seria mais compreensível a manutenção desta situação. Seria uma questão de análise do custo-benefício das mudanças. Menos compreensível é a verificação destes valores quando a solução está mesmo à mão e sem qualquer custo adicional – basta simplesmente cumprir as regras de ouro na administração do colostro (ver Agrotec nº1).

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