Política Agrícola, Regional e de Coesão (Parte II / II)

O comércio internacional e a tendência para a concentração nos mercados

Por: Nuno Ornelas Martins, Universidade dos Açores

O comércio internacional e a tendência para a concentração nos mercados

A própria lógica de funcionamento do comércio internacional traz uma acrescida competição internacional. Isto significa que os países industrializados precisam dos países em vias de desenvolvimento não só para encontrar recursos materiais e mão-de-obra menos onerosos, mas também para encontrar mercados para a sua produção, num contexto de competição crescente, como explicam as teorias da dependência internacional.

Neste processo sobrevivem apenas as empresas de maior dimensão, com poder de mercado suficientemente elevado para fazer face à competição crescente, e que dependem da acumulação de capital e escoamento da produção. São essas empresas que predominam no cenário global actual, e que estruturam o processo que leva à concentração de rendimento nos países industrializados.

Muitos autores clássicos, como Smith, Say, Ricardo e Mill, explicaram as virtudes do mercado e do comércio internacional, considerando o mercado um sistema onde a competição contrabalança o interesse próprio, sendo pois um processo auto-regulado (e suportado por disposições éticas e normas morais), que gera benefícios face à divisão do trabalho que permite. Estes autores clássicos estão na base do que se designa actualmente como as teorias liberais do desenvolvimento, que enfatizam os aspectos positivos dos mecanismos de mercado, e as vantagens da divisão internacional do trabalho.

Mas é preciso notar que os argumentos de Smith, Say e Ricardo baseavam-se no pressuposto de uma economia de, diríamos hoje, pequenas e médias empresas, onde o poder de mercado de cada empresa individual era relativamente reduzido. Mill (1848), que escreveu mais tarde, tinha já mais cuidado na sua defesa do sistema de mercado. Outros autores clássicos como Malthus e Marx, por exemplo, não partilhavam deste optimismo, explicando que a falta de procura levaria a crises recorrentes.

De facto, a verdadeira diferença entre os autores clássicos de Smith a Marx em matéria de política económica resulta mais das suas crenças quanto ao mercado tender para a concentração ou para a descentralização, do que duma atitude dogmática a favor ou contra a liberalização económica. O mercado defendido por Smith (1776) era um mercado descentralizado, em que os vários agentes tinham um poder competitivo semelhante que auto-regulava o interesse próprio de todos, enquanto o capitalismo criticado por Marx é um sistema que tende para a concentração de capital, com o consequente aumento do poder de mercado de alguns agentes face a outros, e onde alguns agentes adquirem dimensão suficiente para se tornarem monopólios ou oligopólios mantidos não pela actividade inovadora, como Joseph Schumpeter (1942) defenderia, mas pela extracção de rendas apropriadas precisamente devido à falta de concorrência.

De resto, as hierarquias burocráticas das grandes empresas transnacionais assemelham-se mais ao Estado burocrático criticado por muitos autores liberais, do que à empresa situada num mercado concorrencial, analisado por Smith, e gerida pelo empreendedor descrito pelo seguidor de Smith em França, Jean-Baptiste Say, e estudado posteriormente por Schumpeter. O que está em causa não é uma inconsistência do pensamento económico clássico, mas antes a existência de respostas diferentes por parte do mesmo pensamento para cenários diferentes.

A concentração de capital prevista por Marx (1867) acabou por acontecer em grande medida. Neste sentido, o capitalismo tornou-se um processo de expropriação, em que o rendimento concentra-se num número cada vez mais limitado de indivíduos. Este facto levou à existência de desigualdades na distribuição de rendimento, que por sua vez levam a uma diminuição da procura De facto, como explica John Maynard Keynes (1936), as populações com menor rendimento são aquelas com uma propensão marginal ao consumo superior. Logo a desigualdade na distribuição de rendimento reduz o consumo e a procura.

Foi a cedência de crédito por parte das instituições financeiras que permitiu assegurar a procura agregada neste contexto de desigualdade, evitando a quebra da procura em mercados como o mercado de habitação, automóvel, e outros bens de consumo. É também pelo facto de grande parte da procura (com vista a consumo e a investimento) ter sido assegurada pelo sistema financeiro que a crise financeira recente, iniciada em 2007, rapidamente se tornou uma crise económica mundial em 2008, contrariamente às previsões dos economistas da corrente ortodoxa dominante

O processo de expropriação aplicado à agricultura

Para além disso, muitos bens que eram anteriormente bens públicos, dos quais toda a comunidade de uma região menos desenvolvida beneficiava, têm-se transformado em bens privados, o que diminui a capacidade da comunidade para prosseguir o desenvolvimento rural. Como Marx (1867) explica, a apropriação privada de bens anteriormente públicos verifica-se já desde a vedação e expropriação dos terrenos comuns e da Igreja (que eram usados como terrenos comuns) após a reforma protestante (por exemplo em Inglaterra). Este facto aumentou a dependência do agricultor face aos proprietários da terra, mas gerou um contexto em que o valor gerado pelo agricultor continuava na região apenas se o proprietário pertencer a essa região.

Esta dependência continua hoje com a manipulação genética das espécies, que se por um lado aumenta a produtividade agrícola, por outro lado gera produtos que não são auto-reprodutíveis (dada a infertilidade das sementes) e geram uma apropriação privada, por parte das empresas produtoras das espécies geneticamente manipuladas, da capacidade de reprodução agrícola (que antes não era apropriável privadamente), gerando-se uma extracção do valor criado na região.

A introdução de fertilizantes e o surgimento de rações produzidas industrialmente tinha já criado este tipo de dependência. Esta introdução aumentou a produtividade agrícola, mas tornou o agricultor dependente das empresas produtoras de fertilizantes agrícolas e rações. Com a concentração do poder de mercado em algumas empresas multinacionais ou transnacionais nos sectores da produção de fertilizantes e rações, tal como de medicamentos de uso veterinário, estas empresas obtêm algum controlo sobre os preços praticados, e pagos pelo agricultor. Gera-se assim uma extracção de valor das regiões onde a actividade agrícola tem lugar, para estas empresas que actuam no plano internacional no contexto da globalização.

Para além de uma dependência do produtor agrícola face a estas empresas, gera-se também uma dependência da região onde o agricultor se insere face a estas empresas, e uma extracção do valor criado pelo agricultor e pela região para as empresas que comercializam estes produtos. A existência de competição faz com que o uso destes produtos, como fertilizantes, rações, e medicamentos veterinários, não possa ser abandonado, pois reduziria a produtividade e tornaria o agricultor e a região menos competitivos. A falta de medidas europeias que favoreçam as características do produto (por exemplo o valor proteico de um dado alimento) leva também a uma opção pela quantidade, que obriga a uma maior produtividade.

As empresas multinacionais ou transnacionais que comercializam fertilizantes, espécies geneticamente modificadas, medicamentos veterinários, e rações, por sua vez, desenvolvem uma actividade que requer um grande investimento, o que obriga a recorrer ao sector financeiro, que por sua vez é um sector com grande capacidade de apropriação de valor, face à concentração existente no sector (algo que também reduz a concorrência no sector financeiro).

Em resposta a esta pressão financeira, as empresas multinacionais ou transnacionais que comercializam fertilizantes, espécies geneticamente modificadas, medicamentos veterinários, e rações vêem-se obrigadas a aumentar os preços (garantindo através de patentes esses preços em diversos sectores), contribuindo para o aumento dos custos do agricultor. As empresas multinacionais ou transnacionais que adquirem os produtos agrícolas, por sua vez, enfrentam uma pressão semelhante para reduzir os seus custos, e assim o agricultor, e as regiões menos desenvolvidas, acabam por ser o elo mais fraco neste processo de globalização, perdendo cada vez mais valor na cadeia de valor. A extracção de valor da cadeia de valor, no contexto do processo de globalização, torna-se assim um processo que contribui fortemente para a criação e acentuação dos desequilíbrios regionais vistos anteriormente.

Assim, existem forças poderosas contribuindo para os desequilíbrios regionais, que implicam uma coordenação da política europeia. Para além da questão da redistribuição pelas regiões, é preciso ter também presente a necessidade da Europa obter recursos para financiar essa redistribuição. Uma vez que no sistema capitalista actual o investimento depende da expectativa de lucro, este torna-se fundamental para o investimento. No entanto, o aumento do lucro não pode ser conseguido à custa da redução dos salários, pois se essa solução é adoptada no conjunto dos países europeus, gera-se um decréscimo da procura.

Como Keynes (1936) explica, existe uma maior propensão ao consumo por parte de quem recebe menos rendimentos (como quem recebe salários), pelo que a desigualdade na distribuição de rendimentos prejudica a procura. É verdade que essa desigualdade aumenta o rendimento de quem tem uma maior propensão marginal à poupança, mas essa poupança não se poderá traduzir em investimento se não houver procura para o que se for produzir com esse investimento. Não se pode pois garantir o lucro à custa dos salários. Mas para se assim é, a única solução para garantir a criação de riqueza no sistema capitalista é o crescimento económico, e é com vista à promoção deste que se desenha a agenda da Estratégia de Lisboa, na crença que o conhecimento e a tecnologia são a base do crescimento.

Contudo, esta ênfase no lado da oferta esquece por vezes o lado da procura, que é crucial, como Keynes explica. Além disso, muitos dos sectores em que se aposta na Estratégia de Lisboa, ligados à Bio-Economia do conhecimento e à biotecnologia, são sectores que, estando ligados às empresas multinacionais ou transnacionais que comercializam fertilizantes, espécies geneticamente modificadas, medicamentos veterinários, e rações vistas anterioremente, e outras empresas do sector industrial da biotecnologia, acabam por contribuir em grande medida para a extracção de valor das regiões menos desenvolvidas, através do aumento dos preços para os produtores dessas regiões menos desenvolvidas.

Esta extracção de valor verifica-se noutras áreas do sector primário, como o sector energético, onde a concentração de empresas multinacionais e transnacionais permite-lhes um controlo sobre os preços e a economia que permite a obtenção de uma renda para além do lucro de um mercado competitivo, aumentando os custos de produção noutros sectores. Verifica-se também noutras áreas do sector farmacêutico, incluindo fármacos para uso humano, e não apenas aqueles para uso veterinário, com a criação de patentes e controlo dos preços.

Estes factores aumentam os custos de produção e de vida das populações das várias regiões, com particular incidência nas regiões menos desenvolvidas. A Estratégia de Lisboa procurava que o complexo industrial da Bio-Economia do conhecimento fosse fundamentalmente criador de valor, e não um sector que extrai valor de regiões menos desenvolvidas, sendo que a realidade presente obriga a uma articulação entre a política regional e de coesão, e a agenda da Estratégia de Lisboa.

Além disso, existe um problema de fundo ligado ao processo capitalista, e ao facto de este necessitar de crescimento económico indefinido: o crescimento indefinido coloca grande pressão sobre os recursos naturais, gerando problemas ecológicos e ambientais. O debate entre crescimento e redistribuição precisa pois ser repensado, até porque o próprio crescimento está condicionado pela falta de procura, que decorre da desigualdade na distribuição de rendimentos. Se a estratégia dominante tem sido crescer para redistribuir, no contexto de crise actual a estratégia mais adequada seria a estratégia Keynesiana de redistribuir para crescer.

Se assim é, a desigualdade entre populações e regiões é pois a questão chave na actualidade. Assim, a política regional e de coesão, ao focar a redistribuição, que quando bem sucedida garante mais rendimento para as populações e regiões onde existe uma maior propensão marginal ao consumo, teria de ser uma política fundamental para o futuro da União Europeia, que deveria ser devidamente coordenada com outras políticas fundamentais, como a Política Agrícola Comum e com a Estratégia de Lisboa, especialmente num contexto de globalização que exerce uma forte tendência não no sentido de uma maior redistribuição, como seria desejável, mas de uma maior desigualdade, que tem efeitos nefastos na dinâmica económica.

Conclusão

Existe uma razão pela qual a questão da redistribuição tem sido esquecida, e os economistas têm-se concentrado apenas no crescimento. O pensamento económico clássico, desenvolvido por autores como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Robert Malthus, John Stuart Mill, e Karl Marx, tinha uma visão integrada da economia, como um processo de reprodução, onde para além das condições de subsistência do sistema económico, era produzido um excedente. Essa visão da Economia, como o estudo da produção de um excedente, num contexto de permanente reprodução do sistema, foi abandonada após a revolução marginalista, protagonizada por Carl Menger, Stanley Jevons, e Léon Walras.

Após a revolução marginalista, a Economia passou a focar essencialmente a satisfação de preferências subjectivas, e não na reprodução do processo económico. Dado que as preferências subjectivas são consideradas ilimitadas na teoria marginalista, existe sempre escassez, o que obriga ao crescimento económico indefinido. A Economia deixou de ser um estudo da produção e distribuição de um excedente, como era para os clássicos de Smith a Marx, e tornou-se assim no estudo da afectação de recursos em condições de escassez.

Mas enquanto uma ciência assente no conceito de excedente irá naturalmente centrar-se na redistribuição desse excedente, uma ciência assente no conceito de escassez vai centrar-se no crescimento indefinido, como tentativa de eliminar essa escassez. Assim, a evolução do próprio pensamento económico contribui para que os economistas se centrem no crescimento económico num contexto de escassez, e não na redistribuição do excedente.

Quando o modelo de análise da economia é o mercado competitivo, temos um contexto de concorrência em que os preços tendem para o custo de produção. Nesse caso, a teoria económica ortodoxa, que se baseia no pensamento marginalista, defende que em concorrência perfeita, o lucro será nulo, e o excedente desaparece. Assim, o excedente não é um conceito utilizado na teoria económica ortodoxa (a não ser na forma de excedente do consumidor, ou excedente do produtor, mas aí o sentido é outro). Mas como autores clássicos como Ricardo argumentam, a agricultura  é uma excepção porque esta é uma actividade em que aquilo que é produzido, pode ser também utilizado como meio de produção. Se o preço dos bens baixar, baixa então também o preço dos meios de produção, e o excedente mantém-se na agricultura. Por este motivo, Ricardo defende que o lucro da actividade económica, num contexto concorrencial, tenderá a ser igual ao lucro da actividade agrícola, ou ao excedente agrícola. Não é no mercado que se baseia esta análise, mas na agricultura.

Tendo isto em conta, existe um aspecto fundamental onde o estudo da Agricultura, e da Economia, se podem complementar, no contexto actual em que o mercado é cada vez menos concorrencial, e a actividade económica real está cada vez mais distante do modelo do mercado de concorrência perfeita. O uso de uma dada teoria económica para estudar a actividade agrícola pode ser avaliado tendo em conta em que medida é que uma dada perspectiva teórica ajuda a compreender a agricultura, ou tendo em conta o modo como as próprias características da actividade agrícola podem ajudar a desenvolver uma determinada teoria.

Ao longo da história do pensamento económico, houve uma interacção entre a teoria utilizada na análise, e objecto de análise, no estudo da agricultura, por exemplo nos autores fisiocratas, que baseavam o seu modelo da economia na agricultura. Os autores fisiocratas, como François Quesnay, influenciaram significativamente o pensamento económico clássico, de autores como Smith, Ricardo, Malthus, Mill e Marx. Esta influência da agricultura na teoria económica clássica encontra-se de modo mais claro em autores como David Ricardo e Piero Sraffa.

Parte da razão pela qual a actividade agrícola contribuiu para o desenvolvimento da teoria económica resulta do facto de determinadas estruturas e relações económicas se manifestarem de um modo mais directo na actividade agrícola do que noutras actividades. Este facto é particularmente manifesto no estudo da produção de um excedente, da emergência de rendas diferenciais, ou na análise dos bens públicos, factos económicos que, sendo relevantes para compreender toda a actividade económica, e estando presentes nos diversos sectores da economia, como os sectores industriais e comerciais, estão todavia presentes de um modo mais transparente na actividade agrícola.

De facto, encontramos no capitalismo actual um reduzido grupo de empresas com grande poder e controlo sobre o seu mercado de actuação, que através do seu controlo dos preços conseguem apropriar-se de uma renda para além daquilo que seria o lucro normal num mercado competitivo, isto é, de uma renda diferencial. Estas empresas conseguem muitas vezes apropriar-se assim de uma fatia do excedente superior ao lucro normal de um mercado competitivo, e também de diversos bens públicos, que acabam por ser privatizados, e apropriados pelas empresas que obtiveram o seu poder económico através da manutenção de rendas diferenciais, e da apropriação do excedente.

O facto de termos como renda diferencial, expropriação de bens públicos, ou apropriação de um excedente, terem sido mais utilizados pelos autores clássicos no estudo da agricultura não significa que esses fenómenos apenas ocorram na agricultura, mas apenas que esses fenómenos manifestavam-se de modo mais claro na agricultura. Este estudo da agricultura, iniciado pelos fisiocratas, e continuado pelos clássicos de Smith a Marx, fornece-nos uma visão mais clara dos processos que se verificam no capitalismo actual, do que a teoria marginalista da escassez que se tornou dominante.

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