O refugo nas vacarias de leite

Por: George Stilwell (FMV-UTL) Médico-veterinário, Diplom. ECBHM,
Tiago Barros, médico-veterinário, Faculdade de Medicina Veterinária – Universidade Técnica de Lisboa

Infelizmente ainda é raro encontrar bons registos nas explorações de pecuária portuguesas. A expressão “bons registos” significa que são completos, fiáveis, actualizados e trabalháveis, já que de nada serve uma panóplia de informação coberta de teias de arranha em dossiers ou perdida no disco duro do computador. Mesmo aqueles registos que dependem pouco do produtor, como seja os da qualidade do leite derivados dos serviços de contraste leiteiro, estão geralmente subaproveitados sendo apenas usados para dar um panorama geral e isolado dos níveis de células somáticas ou teor de gordura naquele mês.

REGISTAR TUDO

A falta de análise de toda esta informação permite que os problemas se mantenham escondidos evitando a implementação atempada de medidas correctivas. Ou, por outro lado, não possibilita a tomada de consciência da inutilidade ou efeito negativo de uma qualquer intervenção. Por exemplo, é frequentíssimo ouvir produtores assegurarem a pés juntos que os índices reprodutivos melhoraram desde que foi introduzida uma nova medida, para depois se vir a descobrir que as coisas estão iguais ou mesmo piores, apenas porque na mente do avaliador houve uma predisposição para justificar o investimento.

Como se disse é preciso que os registos sejam completos, o que significa que interessa apontar quase tudo – idade, peso, doenças, quantidade e qualidade das produções, número de lactações, ascendência e descendência, cios e inseminações... Será de certeza mais útil ter uma base de dados com informação excessiva do que deficiente, já que é mais fácil descartar informação extra do que a inventar. Dos registos individuais nascerá a base de dados da manada na forma de médias, índices ou taxas, e que permitirá comparar explorações, avaliar a evolução ao longo do tempo, detectar diferenças entre diferentes momentos ou diferentes sub-grupos, identificar factores de risco, fazer soar o alarme e tantas outras coisas.

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O REFUGO DE VACAS LEITEIRAS

“Aqueles que não recordam o passado estão condenados a repeti-lo”.

Um conjunto muito específico de dados, aos quais não tem sido dada muita importância, são os dados relativos ao refugo dos animais adultos em explorações de bovinos leiteiros. Em Portugal pouco ou nada está publicado ou sequer se sabe sobre este assunto.

A abordagem habitual, que dá prioridade aos dados relativos aos animais vivos e produtivos, está incorrecta porque suprime informação crucial à boa gestão da exploração. A análise de refugo é vista por muitos como um trabalho inútil, no entanto esta expõe problemas vigentes na exploração que de outra forma poderiam passar despercebidos. Há imensa informação que deriva de dados tão simples como o número, idade e lactações dos animais que saíram de produção. Também o destino desses animais deve ser descriminado nos registos – morreram na exploração? Foram para abate? Ou foram transferidos para outra exploração? Os valores de refugo por si só dizem muito pouco, já que a exclusão de um animal tanto pode resultar de uma opção voluntária e consciente do produtor interessado em renovar a genética do efectivo, como, pelo contrário, de um mau maneio ou sanidade deficiente. A distinção nem sempre é fácil e daí a discussão que continua a existir quanto ao uso de expressões como “refugo voluntário”, “refugo involuntário”, “taxa de renovação” ou “taxa de reposição”. No presente artigo iremos usar indiscriminadamente o termo refugo.

É, por isso, essencial saber a razão da saída da vaca de produção. Por exemplo, quantas vacas foram refugadas devido a problemas de unhas, ou por infertilidade, ou por doença metabólica ou por mastites crónicas… E atenção porque esta informação deve ser verdadeira e a mais detalhada possível – uma vaca provavelmente é infértil devido a um problema podal crónico, e, portanto, ambas as razões devem constar da causa de refugo!

A ideia que as razões e os valores de refugo estão bem presentes na nossa cabeça, e que por isso temos a situação sobre controlo, é completamente ilusória e normalmente conduz à tomada de medidas infrutíferas. Igualmente, a manutenção de um impecável sistema de registos sem posterior análise é uma autêntica perda de tempo. Periodicamente devemos trabalhar os dados, comparando-os com os de momentos anteriores ou com os valores que a literatura científica advoga como sendo os aceitáveis.

Nas explorações menos modernizadas e de pequena dimensão a recolha e compilação dos dados é feita pelo próprio proprietário muitas vezes apenas com o auxílio de caneta e papel. Normalmente só são registados os dados relativos aos acontecimentos considerados mais importantes, como as datas de partos e inseminações. Esta forma de registo está a cair em desuso com o crescimento das explorações e com a banalização dos computadores e dos sistemas informáticos de apoio à gestão das explorações. A caneta e o papel passaram então para um segundo plano, sendo apenas utilizados como uma espécie de memória intermédia capaz de armazenar dados desde o momento da ocorrência até ao seu armazenamento em suporte informático. Casos há em que este par foi substituído pelos parentes tecnológicos mais evoluídos como os smartphones, ou ainda pelos sistemas que permitem a recolha automática de dados, como é o caso dos sistemas de ordenha robotizados, onde informações como a produção, a actividade animal e a condutividade eléctrica, são gerados individualmente pelo animal que vai à ordenha. Devido ao auxílio deste tipo de sistemas, hoje em dia os produtores têm à sua disposição uma enorme quantidade de dados sobre a sua exploração. Como se disse, para que estes lhes sejam úteis devem ser analisados e interpretados e só após isto devem ser usados como parte integrante do processo de decisão, sendo estes dois últimos passos o mais recente desafio dos produtores leiteiros.

CASO DE ESTUDO

Para demonstrar a utilidade do tratamento dos registos, apresentamos de seguida os resultados de uma das primeiras análises sistemáticas dos padrões de refugo em explorações leiteiras de Portugal. Neste estudo da FMV-UTL, efectuado junto a 20 explorações com 90 a 1.100 vacas em lactação, investigámos os dados de refugo de 2.476 animais adultos. A idade média, dias em lactação e número de lactações no momento do refugo, foram de 5 anos, 242 dias e 2,97, respectivamente. Quanto ao destino demonstrámos que 26% morreram na exploração, 68% foram enviadas para o matadouro e 6% foram vendidas para outras explorações. As principais razões de refugo foram mastites (30%), problemas reprodutivos (24%) e patologia podal (11%). A análise do momento de refugo apresentou um interesse acrescido por nos direccionar a atenção para as fases produtivas, com maior risco de refugo, como o peri-parto, dando-nos uma ideia do maneio e sustentabilidade das nossas explorações leiteiras. Por exemplo, verificámos que mais de 50% das mortes ocorreram nos primeiros 39 dias pós-parto Supondo uma exploração de 250 vacas com uma taxa de mortalidade de 9% (média encontrada neste estudo) significa que por ano esta exploração perde cerca de 13 vacas no pós-parto. O custo directo da reposição destes animais ronda os 18.200 € (assumindo 1.400€/novilha), acrescendo a este valor o potencial produtivo destes animais refugados no início da lactação.

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Concluímos que um elevado número de vacas leiteiras são refugadas muito cedo após o parto e em idade demasiado jovem, havendo elevada perda de potencial produtivo e genético. O facto de, em média, os nossos animais leiteiros não fazerem mais de 2,9 lactações é preocupante em termos económicos e de bem-estar animal. Provavelmente em resposta a esta perda constante de “sangue-novo”, confirmámos que as primíparas são mantidas mais tempo na exploração quando têm problemas de fertilidade (413 dias) quando comparadas com as multíparas (342 dias). O alto nível da taxa de mortalidade, especialmente nos primeiros meses em lactação indica que é necessário melhorar o período de transição e o maneio do peri parto nas explorações portuguesas.

Com este pequeno exercício fica claro como uma adequada análise dos dados permite retirar elações importantes e apontar caminhos para a melhoria do maneio nas explorações leiteiras. Nunca é demais referir que este trabalho de interpretação e a validade das conclusões que dai advêm dependem quase exclusivamente da qualidade dos registos efectuados. E isso depende do produtor no seu dia-a-dia.

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