Agricultura em tempo de crise

No passado dia 31 de março, num período de crise de saúde pública, a CONSULAI promoveu um debate em formato webinar, com o tema “Agricultura em tempo de crise: o que vai acontecer e como podemos antecipar e preparar o futuro que aí vem”. 

Agricultura

Por: CONSULAI

O debate, que contou com a presença de cerca de 600 participantes, reuniu especialistas de diferentes esferas da sociedade, da economia ao setor agrícola, que discutiram cenários, preocupações e desafios para o setor agrícola e alimentar nos próximos tempos. 

Portugal e o mundo encontram-se atualmente perante uma crise de saúde pública nunca vista, que inevitavelmente se traduzirá numa crise económica e social. Esta crise tem, e terá, um impacto em todos os setores de atividade, mas esse impacto poderá ser muito diferente em cada setor. Enquanto o setor da saúde e o setor agroalimentar continuam (necessariamente) a trabalhar, há setores, como a indústria dos têxteis ou a do turismo, que têm sido altamente afetados.

Para a agricultura, além do desafio económico e social, esta crise é uma ameaça ao status quo de temas fraturantes que já existiam como, entre outros: (1) as tendências políticas de priorização do ambiente em detrimento da produção; (2) a concentração dos canais de distribuição relativamente à produção; (3) a mão de obra, que por vezes é escassa e tem que ser importada; e (4) as políticas públicas, por vezes ineficientes e pouco flexíveis.

A pandemia do Corona vírus pode, por isso, representar uma ameaça muito séria, mas representa também uma oportunidade de mudança para todo o setor. Esta mudança deve, no entanto, ser refletida no contexto político europeu e nacional, e terá necessariamente de partir das empresas e da sociedade civil, de forma a que o setor como um todo possa, quando tudo isto passar, estar em situação melhor do que estava quando tudo isto começou.

Em período de negociações do novo quadro comunitário para a futura Política Agrícola Comum (PAC), a tendência para uma produção assente na conservação do ambiente e da biodiversidade tem sido o conceito chave em que quase tudo se baseia. Nas últimas semanas, no entanto, há cada vez mais vozes a afirmar que esta posição pode ser comprometedora da soberania (e até da segurança) alimentar, uma vez que podemos numa situação como a atual não ter a capacidade de ter alimentos, seguros e de qualidade, para todos.

Na realidade, o valor estratégico da agricultura, para a União Europeia (UE) e para os Estados Membros (EM), tinha vindo a ser assumido, nos últimos anos, mais como ecológico e de caráter ambiental do que propriamente associado à independência da balança comercial relativamente a países terceiros, ou como setor que garante o fornecimento de alimentos.

De forma simples e clara, fair pay for fair play significa neste contexto que se exigirmos dos agricultores serviços de preservação de bens públicos, como a biodiversidade e a paisagem, estes serviços têm de ser remunerados, uma vez que o mercado não paga, nem está disponível para pagar, estes serviços. Se a nova PAC for aprovada no formato que está pensado, estima-se que a aposta nestes serviços cause uma quebra na produção de alimentos na ordem dos 15%.  

No contexto atual de crise, onde já há alguns EMs, tradicionalmente abastecedores da UE, que restringem as suas exportações de bens e serviços, será sensata tal aposta? O consenso neste debate é um compromisso reformulado. Obviamente que o ambiente não pode ser desligado da produção, pelos benefícios produtivos a longo prazo e pela responsabilidade ambiental do setor, mas alguém terá que financiar este papel da agricultura. A finalidade da produção agrícola é produzir e garantir a sustentabilidade desta produção, assegurando a dignidade e a segurança dos agricultores, do país e dos EM’s da UE.

Esta pandemia pode ser, assim, o abanão que os decisores políticos necessitavam para um novo compromisso entre ambiente e produção, priorizando a soberania alimentar e reduzindo a dependência externa para esse fim.

Canais de distribuição 

Uma das primeiras consequências da pandemia foi a abrupta mudança nos canais de distribuição no setor agroalimentar. Assistimos ao canal da Hotelaria, Restauração e Cafés (canal HORECA) a fechar quase na totalidade, enquanto canais de e-commerce como a entrega em casa, ou as encomendas para levantar na loja, avançaram a um ritmo acelerado. 

Este comportamento implica que o impacto no setor agrícola seja altamente heterogéneo, sendo que, graças a uma dicotomia entre hábitos de consumo domésticos e hábitos de consumo “fora de casa”, existem subsetores agroalimentares que saem reforçados (como a laranja, as conservas, e os cereais) enquanto outros sofrem uma forte redução de vendas (como o vinho de gama alta ou os frutos vermelhos).

Setores produtivos e que eram competitivos, como a piscicultura, o vinho e alguns perecíveis, revelam assim a necessidade de inovar na sua forma de escoamento/cadeia de distribuição. O exemplo que surge com mais frequência é a venda direta, mas também a venda em cadeias curtas, através de canais físicos (por exemplo mercearias) e virtuais. A situação é ainda mais complicada quando estes setores são muito dependentes do canal HORECA, que tem sofrido alterações nefastas em épocas de crise.

O canal de e-commerce tem sofrido também alterações profundas. Estas alterações apresentam-se como uma oportunidade para produtos primários, e não só como solução para a restauração e uma pequena fatia do grande retalho. De facto, nas últimas semanas apareceram inúmeros casos de sucesso de iniciativas que utilizam as redes sociais pata divulgar e vender produtos. A questão da gestão de informação aparece também neste debate como fundamental para uma otimização do escoamento de produtos. A ligação entre as necessidades do consumidor, através do retalho, e a oferta da produção, está longe de ser ótima. A partilha de informação é considerada valiosa por ambas as partes, sendo que numa altura de tensão na cadeia de valor, a partilha de informação pode ser considerada limitante. 

A necessidade de apostar em novos canais no atual contexto é consensual. Ao reduzir intermediários, a produção reforça as suas margens e melhora a sua sustentabilidade económica, crucial para o setor. Da mesma forma, novos canais podem contribuir para uma cadeia mais curta de abastecimento alimentar, aproximando os produtores dos consumidores.

Mão-de-Obra 

As operações agrícolas, fundamentais para o fornecimento de alimentos, têm obrigatoriamente de utilizar recursos humanos. As características desta pandemia tornam este recurso, nomeadamente em culturas que necessitam de muita mão-deobra, num recurso de risco. Qualquer forma de produção pouco mecanizada, como é o caso normalmente da produção de frutas e hortícolas, é menos eficiente quando analisado o indicador da quantidade produzida por unidade de trabalho.

Uma das críticas referidas no webinar foi a tendência dos media, e por vezes dos atores políticos, para atacar formas de produção mais mecanizadas e intensivas, que na realidade são muitas vezes mais produtivas e menos intensivas em mão-de-obra (mais mecanizadas). No enquadramento atual, algumas formas de produção mais dependentes de mão de obra podem colocar em causa a segurança alimentar nacional, mas também a saúde pública, justamente porque são mais intensivas em mão-de-obra.

Na realidade, existe um déficit de mão-de-obra no setor agrícola de uma forma geral, mesmo antes da crise. O setor depende fortemente de “mão-de-obra importada” que, ao que tudo indica, não estará disponível para a campanha que se avizinha, uma vez que as fronteiras estão fechadas. Por outro lado, existem já casos registados de trabalhadores estrangeiros infetados pelo novo Corona vírus, resultando no cessar da produção das explorações onde estas pessoas trabalham. Isto acontece por não existir alternativa quando a mão-de-obra estrangeira não está disponível, e obviamente porque nestas culturas, sem mão-de-obra disponível, não há nada que se possa fazer.

A crise sanitária e o fecho de fronteiras são, deste modo, ameaças muito reais para a produção de alimentos no curto e médio prazo, e para o abastecimento alimentar das populações. Se nada for feito, e se o panorama não se alterar, pode ser considerado um cenário mais extremo de requisição de mão-de-obra a quem esteja desempregado ou em regimes de lay off, como tem sido sugerido noutros países. Existem, no entanto, muitas dúvidas sobre a exequibilidade desta solução.

Neste debate surgiu o consenso de que, seja qual for o cenário, a mão-de-obra é indispensável para a produção agrícola, não existindo atualmente outra alternativa para manter o nível produtivo com menos recursos humanos, pelo que é urgente analisar este tema e procurar soluções.

Políticas públicas e financiamento

Perante alterações bruscas no setor agrícola e em toda a cadeia de valor, as medidas a tomar têm igualmente de ser céleres e fluidas. O setor agrícola pode ser considerado privilegiado, ao beneficiar eventualmente da liquidez dos apoios públicos que permitem uma intervenção sem fundos adicionais de outras partes do Orçamento de Estado. Não obstante, a forma e a velocidade de intervenção atual foram alvo de discussão neste debate.

O Estado possui um papel muito específico e determinante, uma vez que atualmente conta com uma capacidade para "injetar” cerca de 1.200M€ anuais no setor agroalimentar, enquadrados nos apoios da PAC (ajudas diretas e apoios do PDR 2020). A prioridade deve, assim, passar por “pagar, pagar e pagar”, como foi referido no debate. Sendo uma posição consensual no painel, esta posição consiste em adiantar e acelerar pagamentos e de adiar controlos de forma a permitir o pagamento de apoios que são devidos aos agricultores. 

A realidade atual é que muitos destes fundos ainda não chegaram aos agricultores, contrastando com as dificuldades associadas à crise, que já estão bem presentes no quotidiano de algumas empresas. Sendo importante apoiar as produções mais afetadas pela crise, é também importante apoiar as produções que mais contribuem para o saldo da balança comercial nacional. Esses subsetores agrícolas representam a especialização produtiva onde Portugal se destaca e que, consequentemente, contribuem de forma importante para a economia nacional e, simultaneamente, para a segurança alimentar.

Por outro lado, numa perspetiva europeia, é urgente a criação de um fundo de crise. Este fundo serviria para épocas como a da atual pandemia, providenciando maior agilidade aos EM’s para a atenuação de potenciais efeitos negativos na produção alimentar, que colocaria em risco toda a sociedade. Numa ótica de comércio externo, é notória a necessidade de reflexão dentro da UE sobre o compromisso entre globalização e a dependência de blocos externos. Um ponto de reflexão importante neste âmbito é a agenda ambiental europeia, que não pode comprometer a soberania alimentar. De facto, a externalização da produção alimentar para atingir metas ambientais, enquanto se promove um Green Deal, pode ser muito prejudicial de um ponto de vista estratégico, nomeadamente se não houver um mecanismo para garantir a oferta no mercado.

Uma oportunidade para o setor agrícola

Tendo em conta a importância do setor agroalimentar para a superação desta crise em que estamos todos envolvidos, este é o momento ideal para o setor comunicar, para que a sociedade em geral perceba o papel fundamental que tem, que todos assumiam como garantido até há bem pouco tempo. Esta comunicação tem de ser reinventada, de forma a ser ouvida pelo público em geral e, por consequência, pelos decisores políticos.

Como foi referido no debate, as redes sociais são muitas vezes usadas para passar mensagens negativas ou falsas. O que antes era visto como ruído de fundo, atualmente influencia tendências nas decisões políticas. Exemplos como os ataques ao setor do eucalipto, dos pequenos frutos, ou do olival intensivo são somente alguns casos que mostram as ameaças de uma fraca comunicação, em que por vezes se divulga massivamente informação que não tem qualquer sustentação técnica ou científica. 

O setor deve ter uma atitude mais ativa junto de novos influenciadores e das redes sociais, no sentido de passar informação tecnicamente sustentada e credível, que possa dar a conhecer à opinião pública o que se faz bem. O setor agroalimentar é a espinha dorsal de uma sociedade em qualquer momento de crise, infelizmente, na atual crise, a par e passo com o da saúde.

A oportunidade passa por alavancar essa importância hoje, para que amanhã o setor seja mais respeitado e para que possa existir mais força na negociação quando agendas ambientais ou económicas de origem duvidosa ou pouco sustentada se sobrepuserem às da produção, da qualidade e segurança dos alimentos e da soberania alimentar.

É importante que o setor reforce o papel que desempenha a nível económico, social e ambiental, e, ainda mais importante, como um setor estratégico para o país e que garante que todos tenhamos o que comer em casa todos os dias.

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