A Agricultura para lá da Covid-19: Uma nova globalização?

Ao longo de três semanas, a AJAP e o Crédito Agrícola promoveram três debates com personalidades ligadas ao universo agrícola, com uma perspetiva sobre o futuro do setor pós-pandemia. A terceira conferência aconteceu sob a temática "Uma nova globalização?".

A Agricultura para lá da Covid-19 Ciclo de Conferências AJAP Crédito Agrícola

O evento, que foi transmitido nas redes sociais da AJAP e do Crédito Agrícola, contou com a presença Eurico Brilhante Dias, Secretário de Estado da Internacionalização; Paulo Portas, ex-Vice-Primeiro-Ministro; Viriato Soromenho-Marques, Professor Catedrático; Assunção Cristas, ex-ministra da Agricultura e do Mar; João César das Neves, Economista e Professor Catedrático; Francisco Louçã, Economista e Professor Catedrático e Firmino Cordeiro, Diretor-geral da AJAP.

Eurico Brilhante Dias

Eurico Brilhante Dias, Secretário de Estado da Internacionalização, abriu o evento e, durante o seu discurso, deixou vincanda a importância da contínua proteção das políticas europeias.

«O maior inimigo ao crescimento das exportações portuguesas é o elemento europeu. Se a União Europeia não proteger o funcionamento do seu mercado interno, e dos canais que fomos construindo intra UE, daremos um duro golpe na agricultura e nas restantes atividades económicas», destacou. 

Sobre o setor primário, o Secretário recorda que este, nos últimos anos, agiu como uma forma de «reequilibrar a nossa balança de bens e serviços», entregando um «grande contributo para a evolução das exportações nacionais», que aumentaram, praticamente, 20% desde 2015. A exportação aumentou, ainda, para mercados diversos. Eurico Dias abordou o caso da carne da exportação de carne de porco para a China, que foi algo que os governos dos últimos anos trabalharam e que, finalmente, em 2019 foi alcançado. 

Para o setor primário pós Covid-19, o Secretário acredita que existirá maior regionalização da procura; maior proximidade aos mercados de abastecimento; maior utilização de canais digitais como plataforma de troca e uma ideia de segurança perante os decisores da sociedade e na forma como se tomam as decisões.

Sobre o mercado nacional, Eurico Dias defende que «Portugal, com as suas condições naturais e com os projetos que tem, para o regadio em particular, deve posicionar-se como um bom abastecedor de hortícolas e frutícolas, como se tem vindo a posicionar no passado, e julgamos que esse é o caminho que devemos continuar a traçar».

«Não podemos deixar de exportar nem importar»

Paulo Portas

Paulo Portas, ex-Vice-Primeiro-Ministro, foi o segundo orador do dia e começou por ilustrar os desafios que a Agricultura vai encontrar no pós Covid-19.

«Deve-se sublinhar que estas crises muitos violentas valorizam culturalmente e sociologicamente o papel da agricultura, porque é evidente para todos que as pessoas concentram as suas compras em bens que não existem sem a agricultura e sem as exportações», começou por realçar. «Dos poucos setores que estão melhores face a fevereiro, são o dos produtos alimentares e daqueles que são vendidos nos mercados e mercearias». Contudo, Paulo Portas destaca que a memória da população é «curta» e que a importância da agricultura para a sociedade, após a pandemia, deve ser trabalhada pelas associações. Em segundo lugar, o político ponderou sobre os hipermercados e supermercados, que não se estão a sair tão bem como no começo da pandemia. 

Relativamente ao comércio internacional, Paulo Portas reflete que «não podemos deixar de exportar nem importar. Estes dois verbos estão severamente em crise quando existem 85% países do mundo com restrições de tráfego, incluindo de bens. Se nos lembrarmos que a parte agro representa mais de 20% das nossas exportações e do que precisamos de importar, obviamente que entendemos o problema que isto causa». 

O político destacou, também, que os mecanismos da PAC parecem relativamente limitados, tendo sido apenas acionados parcialmente, defendendo ser «preciso pensar em reservas financeiras que sejam adequadas a estas situações». No seguimento desta ideia, realçou também que o setor agrícola precisa das migrações. «Daqui a uns meses, ocorrem as vindimas e nós vamos precisar de trabalhadores migrantes. Desconfiem de quem vos diz que podemos ser só nós e mais ninguém». Segundo Portas, existe, ainda, «um lado invisível desta crise no mundo rural que se tornará mais e mais difícil».

Por último, relativamente ao setor agro, Paulo Portas reflete sobre os incêndios florestais. «Nós sairemos do confinamento para a chamada época de fogos. Seria muito importante saber qual o ponto de situação as nossas florestas».

Após abordar os desafios do setor agrícola, ex-Vice-Primeiro-Ministro expôs a sua visão perante a situação mundial, a globalização e as trocas comerciais. «A pandemia só é igualitária no sentido em que não distingue condições sociais. Contudo, ela é assimétrica no tempo e nos hemisférios e a reabertura é assimétrica no tempo e nos setores», começou por apontar. «A Ásia leva um mês de avanço da Europa e não esqueçamos que a Ásia é quem tem memória dolorosa de outras pandemias e aprendeu algo com isso. A Europa leva um mês de avanço em relação aos EUA e às Américas. Os EUA foram bastante ineficientes a gerir a crise de saúde pública, mas foram mais rápidos ao injectar dinheiro na economia. Nós estamos a uma semana de saber quais são os planos de saber as medidas da UE e os norte-americanos já receberam os cheques de ajuda em casa».

«Quem tomou medidas duras mais cedo, abriu mais depressa, mas ninguém abriu completamente. Todos escolheram alguns setores para fazer experiência piloto, tirar dúvidas e resistir. Não temos nenhuma certeza sobre a imunidade de grupo. Contudo, o avanço da ciência tem sido extraordinário em termos de tempo e modo. A aliança entre a ciência e a indústria é essencial», reforçou.

Sobre a China, espera-se um reequilíbrio face à dependência das cadeias asiáticas. Portas defende que é essencial dizer-se que o país asiático está a ter uma recuperação mais lenta do que era previsto. «Não é fácil reorganizar a produção, como não é fácil voltar a exportar para a UE e os EUA. No fim, todos estamos dependentes uns dos outros».

No final da sua intervenção, Paulo Portas apontou o que lhe parece que serão tendências para o denominado "novo normal". 

Em primeiro lugar, o ex-Vice-Primeiro-Ministro acredita que iremos encontrar uma China mais forte economicamente. «Se a China conseguir ter um crescimento de 9% no próximo ano, será dos poucos países que recuperará mais do que perdeu no espaço de 12 meses. Contudo, ao mesmo tempo, existe uma maior desconfiança face a esta força, desde logo dos seus vizinhos asiáticos, da opinião pública norte-americana e dos europeus. Existe uma relação comercial determinante entre a UE e a China, mas terá que existir reciprocidade».

Este também demonstra preocupação com o cenário de evolução europeu, temendo que ocorra uma divisão entre «os que podem e os que devem». Segundo Portas, «há um risco político que não está a ser visto e medido e um risco enorme das opiniões públicas terem a tentação de acreditar que existiu um abandono, quando já existiam problemas antes». 

Por último, para a questão da evolução da globalização, Paulo Portas considera determinante saber qual será o efeito da pandemia nas eleições norte-americanas de novembro. 

Para o políticos, são valores incontestáveis que a digitalização irá avançar mais que a globalização, que esta não vai regredir, porque o mundo necessita do comércio e que irá acontecer um reforço do setor público.

«As cadeias curtas de distribuição são uma solução, mas não respondem a tudo»

Assunção Cristas

Seguiu-se Assunção Cristas, anterior ministra da Agricultura e do Mar, que começou por evidenciar que «em alturas de crises e dificuldades, somos convocados para nos reconectar ao essencial», como a alimentação.

Segundo a política, «o setor agrícola, mais uma vez, mostrou a sua capacidade de resiliência». Assunção Cristas mencionou, ainda, os setores que foram mais afetados pelo encerramento da restauração e das quebras das exportações, sendo estas o foco de muitas empresas nacionais. Perante tudo isto, a antiga ministra acredita que está a ocorrer uma redefinição de outras opções, nomeadamente da digitalização e das cadeias curtas de distribuição.

«Em pouco tempo, várias PMES, produtores e empresas tiveram que se organizar para chegar ao consumidor, como a tendência da utilização do canal digital, que deve continuar a ser utilizado», destacou.

Além disso, acredita que as pessoas se encontram mais disponíveis para aceitar a mensagem de que devemos produzir e consumir localmente, de forma responsável. Contudo, Assunção Cristas deixa o seu alerta. «As cadeias curtas de distribuição são uma solução, mas não respondem a tudo e não pode acontecer o encerramento do restante, senão tal significaria problemas encerrar a nossa agricultura».

«Hoje em dia, começamos a ouvir falar das próprias cadeias de fornecimento e nesta ideia de soberania alimentar. Não podemos cair no erro de que podemos ser autos suficientes, mas temos que ter a consciência de que é necessário existirem planos de contingência para conseguirmos não estar unicamente dependentes de determinados mercados, seja em termos de importações ou exportações», apontou. 

Assunção Cristas acredita que a a globalização vai ser diferente, tendo que existir um regulamento necessário perante os mercados exóticos que conduzem ao surgimento de pandemias e que todas as tendências apontadas não são contraditórias, mas «precisam ser olhadas com seriedade, para não cairmos em extremos». 

«Esta pandemia não será o único evento extremo das nossas vidas»

Viriato Soromenho-Marques

Viriato Soromenho-Marques, Professor Catedrático, começou por apontar ser conveniente refletir em torno de três conceitos fundamentais: o conceito de normalidade, crescimento e globalização. 

O Professor acredita que esta pandemia não surge como uma surpresa para os decisores da sua sociedade ou, pelo menos, não deveria surgir. «Se estivermos atentos a tudo aquilo que foi dito nos últimos anos, não apenas pelos especialistas, mas até de forma comum, nós verificamos efetivamente que, nos últimos 20 a 30 anos, as zoonoses têm sido a maioria esmagadora das novas doenças, representando 75% do total», reforça, recordando vírus antigos que surgiram no continente asiático.

Em relação a esta mutação de coronavírus que conduziu à Covid-19, Viriato Soromenho-Marques destaca que «não se trata de algo normal, mas sim brutal e altamente destrutivo. Contudo, a pior coisa que podemos dizer é que isto aconteceu sem estarmos à espera».

Além da questão da pandemia sanitária, o Professor Catedrático abordou o processo de alterações climáticas, que se tem revelado violento para os agricultores, que se deparam com eventos meteorológicos extremos que se revelam um desastre para a agricultura. Além disso, os seguros não demonstram margens para os apoiar perante estas ocorrências cada vez mais comuns.

«Esta pandemia não será o único evento extremo das nossas vidas. Vão existir, provavelmente, novas emergências sanitárias e vamos continuar a ter emergências ambientais e climáticas», apontou.

Os pilares da transformação mundial

João César Neves

João César das Neves, Professor Catedrático e quinto orador do evento, começou a sua intervenção ao afirmar que, «para haver uma nova globalização, é preciso garantir que exista uma antiga globalização. A nova também não quer dizer que seja melhor, é simplesmente a seguinte. No passado, tantas vezes protestamos contra o que havia e acabamos por fazer pior».

Para o investigador, «a globalização não é um conceito separável» e centra-se num processo, que tem vindo a ocorrer desde os últimos 30 anos, em que «aconteceu uma transformação na humanidade sem paralelo na história». João Neves defende, assim, que «estamos a viver um período de transformação sem paralelo e a globalização é apenas uma parte disso». 

Existem cinco pilares essenciais para esta transformação: o pilar diplomático, que se centrou na abertura a novos países, principalmente à China; o pilar da globalização, que se divide em globalização das pessoas, capitais e da internacionalização das cadeias de valor; a tecnologia de informação; a energia e as transformações na medicina.«Estes cinco pilares são inseparáveis uns dos outros e devemos aborda-los em conjunto», apontou.

Para o Professor, o sinal mais marcante da globalização é a mudança «espantosa» que ocorreu nas taxas de crescimento, com os países ricos a crescerem menos que os pobres e os últimos a cresceram mais rápido nas últimas duas décadas. «De facto, os grandes beneficiários disto foram os mais pobres mas os benefícios tiveram custos grandes», inicia. «Os custos foram de turbulência, de desigualdade e da utilização da globalização como bode espiatório».

João César das Neves aponta cinco efeitos da Covid-19 na globalização. «O primeiro é o aumento do impacto da digitalização, que é a favor da globalização. O segundo é o aumento do endividamento das economias globais, que também é favorável à globalização. O terceiro é o peso da medicina e o quarta é o aumento da união mundial contra um inimigo comum, o que acontece pela primeira vez e é favorável à globalização. Como elemento negativo, surge na ineficácia das cadeias de valor sem resilência».

Uma imposição que é estratégica para a agricultura portuguesa

Francisco Louçã

Francisco Louçã, Professor Catedrático, gravou a sua participação dada a imcompatibilidade de horários. O antigo político considera essencial «conhecer o orçamento comunitário», visto que tem existido uma grande dificuldade em definir o respetivo desde o período anterior à economia. Outra incerteza apontado é o efeito no comércio mundial perante a interrupção de cadeias produtivas e pela dificuldade de transferência e transformação de produtos. 

«Em contra partida sabemos que, em modalidades que se podem vir a desenvolver, há uma potencialidade de substituição de importações que decorrem destas alterações do comércio internacional e há, sobretudo, uma imposição que é estratégica para a agricultura portuguesa. A pecuária vai passar a ter um papel mais reduzido do que o que tem agora e o conjunto da agricultura terá condicionamentos de sustentabilidade, que serão colocados em novos planos, alterando a estrutura de custos, os mercados e potenciando alguns mercados importantes», reflete. 

Para Francisco Louçã, a sustentabilidade ambiental e económica da produção agrícola vão passar a ser determinantes nas escolhas de estratégia de investimento e na definição dos padrões de produção.

Firmino Cordeiro, Diretor-Geral da AJAP, voltou a fazer um sumário das intervenções. «Hoje, mais voltados para a globalização, é preciso pensar um pouco no mundo e no que se passa em outras regiões», apontou. «A situação mundial deixa-nos preocupados. É impossível recuar na globalização, porque nós precisamos desta».

O Diretor-Deral da AJAP abordou a agricultura intensiva, comercial e mais familiar, destacando a importância desta última, que ocupa território e promove as cadeias curtas de distribuição. 

A primeira conferência abordou a perspetiva nacional como um desafio crescente e a segunda debateu-se sobre a urgência de um futuro coletivo para a Europa.

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