Organismos geneticamente modificados em alimentos: Conseguimos detectá-los?

Por: Telmo J. R. Fernandes / Joana Costa / M. Beatriz P. P. Oliveira / Isabel Mafra,
REQUIMTE, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia, Universidade do Porto

Nas últimas duas décadas, o desenvolvimento da biotecnologia deu origem a uma revolução na agricultura e nas indústrias alimentar, farmacêutica e biomédica. Das implicações na sociedade actual, destacam-se a produção de plantas e animais transgénicos, a clonagem de mamíferos, a produção de proteínas em microrganismos, o mapeamento do genoma humano, as técnicas de detecção e de diagnóstico por reacção em cadeia da polimerase (PCR) e a terapia génica.

A engenharia genética consiste numa aplicação da biotecnologia que compreende uma série de métodos de manipulação de material genético, envolvendo, de uma forma geral, a transferência de genes, tanto dentro de uma mesma espécie, como entre espécies diferentes, sendo este último mecanismo o de maior interesse agronómico. Os organismos modificados desta forma são frequentemente designados por transgénicos ou organismos geneticamente modificados (OGM), sendo estes conceitos, por definição, abrangentes a todas as formas vivas. É de referir que o melhoramento e selecção de plantas com base em técnicas convencionais são efectuados desde os primórdios da agricultura, recorrendo, por exemplo, à transplantação ou cruzamento entre espécies de plantas diferentes. Deste modo, desde que o Homem cultiva plantas para o seu próprio consumo, a sua modificação pela engenharia genética assume-se, sem dúvida, como a transformação mais radical na produção de alimentos.

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A partir da introdução dos OGM na cadeia alimentar, em meados dos anos 90, tem-se assistido a um aumento anual acentuado no cultivo de plantas transgénicas a nível mundial, como se pode verificar na Figura 1. Em 2010, a área total de cultivo de plantas transgénicas alcançou os 148 Mha, dos quais 50% correspondem a soja e 31% a milho, sendo as culturas GM com maior expressão em todo o mundo, seguindo-se o algodão e a colza. A nível da UE, o milho é a espécie com o maior número de modificações genéticas (frequentemente designadas por eventos) diferentes autorizadas (21) em géneros alimentícios e alimentos para animais (www.gmo-compass.org/). Portugal situa-se na 21.ª posição a nível mundial no cultivo de OGM, correspondente apenas a milho MON810, que actualmente é o único evento aprovado para cultivo na UE. Desde 2005, o seu cultivo em Portugal estendeu-se às zonas Norte, Centro (Beira Litoral), Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo (zona com maior área de cultivo) e, mais recentemente, ao Algarve (Figura 2).

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As modificações genéticas das plantas utilizadas na alimentação têm visado sobretudo a alteração de características agronómicas de tolerância a herbicidas e/ou resistência a insectos. Outras modificações com vista ao aumento do tempo de conservação da planta, ao aumento do valor nutricional ou resistência a microrganismos, e ao stress ambiental têm também sido introduzidas. Apesar das vantagens notórias dos OGM a nível agronómico, existem potenciais riscos para a saúde humana e ambiente. Os riscos de toxicidade ou alergenicidade, nomeadamente por parte das novas proteínas expressas, são os principais focos de uma avaliação extensiva dos OGM para a alimentação humana e animal por parte das autoridades competentes, antes da sua colocação no mercado. A nível ambiental, o receio pela alteração e possível diminuição da biodiversidade constitui um ponto crucial de oposição de vários grupos ambientalistas influentes contra os OGM.

Devido aos potenciais riscos que os OGM podem representar para a saúde humana e animal, agricultura e ecossistemas, a sua libertação no ambiente e comercialização encontra-se legislada na UE. De modo a proteger a saúde pública e o ambiente, a UE implementou a Directiva 2001/18/CE relativa à libertação deliberada de OGM no ambiente e sua colocação no mercado. Os Regulamentos (CE) n.º 1829/2003 e 1830/2003 relativos a géneros alimentícios e alimentos para animais GM fornecem a base legal para aprovação de OGM, introduzindo o conceito de rastreabilidade e rotulagem de OGM, e estabelecendo o valor de 0,9% como o limite de material GM num alimento, a partir do qual é obrigatória a indicação de presença de OGM no rótulo.

De forma a verificar a rotulagem dos alimentos quanto à presença de OGM e a sua conformidade com a legislação, têm-se desenvolvido várias técnicas sobretudo fundamentadas na biologia molecular [1] (Fig. 3). As metodologias baseadas na análise de ADN, nomeadamente a PCR, são actualmente as técnicas de eleição para a detecção e quantificação de OGM em alimentos. A PCR consiste num método que recorre a processos bioquímicos, visando um varrimento completo da amostra de ADN e localização de uma ou mais sequências de ADN denominadas sequências alvo. Se a sequência alvo estiver presente, é amplificada milhões de vezes, tornando possível a sua detecção com elevada sensibilidade, e permitindo ainda a sua quantificação através da PCR em tempo real. A amplificação por PCR depende ainda da eficiência dos métodos de extracção de ADN, considerados como um ponto crítico, quando se trata da análise de alimentos processados [2,3].

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Nos últimos anos, o Departamento de Ciências Químicas da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto tem desenvolvido vários trabalhos no que diz respeito ao controlo de OGM em alimentos, os quais compreendem sobretudo o desenvolvimento e a optimização de protocolos de extracção de ADN e técnicas de PCR visando a sua aplicação na análise de diversas matrizes alimentares, a monitorização ao longo do processo de produção industrial e a influência do processamento alimentar na detecção e quantificação de OGM.

Avaliação de alimentos do mercado

O controlo de vários alimentos à base de milho (farinhas, sêmola, carôlo, pipocas, snacks, milho congelado, tostas) comprados em diversas superfícies comerciais na região do Porto permitiu efectuar um rastreio e identificação de eventos de milho transgénico. Num primeiro estudo em 2007, de 37 amostras (num total de 50) onde foi possível detectar um gene de referência do milho, verificou-se que, pelo menos 73% foram positivas ao rastreio de OGM. Os eventos de milho mais frequentemente identificados foram o TC1507 e o MON810, detectando-se também GA21 e NK603. Os resultados da quantificação por PCR em tempo real mostraram que, em geral, as amostras analisadas se encontravam conforme a rotulagem (< 0,9%), contudo dois alimentos, um à base de cerais e outro um snack de milho, possuíam ambos 1,0% de milho GM dos eventos NK603 e TC1507, respectivamente.

Noutro estudo englobando amostras adquiridas em 2009 e 2010, verificou-se que 25% das amostras foram positivas para a presença de material GM, dentro das quais se identificaram os eventos de milho MON810, NK603 e TC1507. A maior parte dos alimentos analisados apresentaram valores bastante abaixo de 0,9%. No entanto, uma amostra de farinha de milho de 2009 continha 1,5% do evento TC1507, enquanto outra de carolo de milho de 2010 possuía, simultaneamente, 20% de milho MON810 e 11% de TC1507 [4].

Os dois estudos mostraram um elevado número de alimentos contaminados com milho GM nos últimos anos, assim como a presença de não conformidades com a rotulagem, indicando a necessidade de controlo dos alimentos pelas entidades responsáveis.

Rastreabilidade de OGM

Sabendo que a estabilidade das moléculas de ADN é afectada por diversos tipos de processamento alimentar, pretendeu-se num outro trabalho de investigação avaliar o efeito da cozedura de broas de milho em forno na detecção e quantificação de OGM. Com a preparação de broas de milho com quantidades conhecidas de milho MON810 e/ou milho TC1507 foi possível detectar e estimar as respectivas proporções de OGM em todas as etapas de preparação, embora em alguns casos por defeito. De uma maneira geral, foi notória a degradação do ADN com o processamento térmico da farinha de milho, o que terá levado à subestimativa de OGM em relação ao valor previsto, em alguns casos.

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Com o objectivo de rastrear a presença de OGM em óleos refinados, foi também possível monitorizar, pela primeira vez, a presença de ADN de soja GM ao longo de todas as etapas da produção industrial de óleo de soja refinado para consumo humano [5,6]. O estudo foi em estreita colaboração com a indústria, o que permitiu a recolha de amostras representativas de cada etapa dos processos de pré-extracção, extracção e refinação do óleo de soja. A PCR em tempo real permitiu a quantificação de soja GM, em todas as etapas anteriores ao processo de extração que compreendem o grão inteiro, partido, laminado e extrudido, e ao óleo extraído (óleo cru). O ADN de soja GM foi também detectado ao longo das etapas de refinação industrial do óleo cru: desgomagem/neutralização, lavagem, branqueamento e desodorização (produto final).

Os resultados dos dois estudos demostraram a possibilidade de rastrear a presença de OGM ao longo das etapas de processamento alimentar até aos produtos finais, apesar de se evidenciar a degradação do ADN.

Referências bibliográficas

  1. Mafra, I. Current methods for detecting genetically modified organisms in foods. In M.B.P.P. Oliveira, I. Mafra, J.S. Amaral (Ed.) Current topics on food authentication, Research Signpost, Kerala, 211-236, 2011.
  2. Mafra, I., Silva, S.A, Moreira, E.J.M.O., Ferreira da Silva, C.S., Oliveira, M.B.P.P. Food Control 19:1183-1190, 2008.
  3. Mafra, I., Ferreira, I.M.P.L.V.O., Oliveira, M.B.P.P. Eur. Food Res. Technol. 227:649-665, 2008.
  4. Fernandes, T.J.R. Detecção e quantificação de milho geneticamente modificado em alimentos comerciais e em broas de milho ao longo da produção, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Farmácia, Universidade do Porto, 2011.
  5. Costa, J., Mafra, I., Amaral, J.S., Oliveira, M.B.P.P. Food Res. Int. 43:301-306, 2010.
  6. Costa, J., Mafra, I., Amaral, J.S., Oliveira, M.B.P.P. Eur. Food Res. Technol. 230:915-923, 2010.

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