O grande utilizador de água - futuro do regadio

O grande utilizador de água - futuro do regadio1

Por Francisco Gomes da Silva2

Nota introdutória

No âmbito do “COPPA2 – 2a conferencia sobre politicas publicas da agua”, promovido pela APRH no passado dia 10 de dezembro de 2015, foi-me lançado o desafio de preparar uma reflexão sobre o futuro do regadio em Portugal. Para essa ocasião, preparei uma breve exposição sobre o assunto, limitada a 15 minutos, e que foi posteriormente disponibilizada através da página oficial da APRH. Este texto, que agora se publica parte dessa mesma reflexão, alargando e aprofundando um pouco mais alguns dos aspetos que, pelas limitações inerentes a uma exposição oral, não foram então abordadas. E um texto de opinião, não se revestindo do formalismo e detalhes de fundamentação que obrigatoriamente caracterizariam um texto de cariz mais académico ou científico.

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1. Algumas particularidades do grande utilizador de água

A agricultura constitui-se como o maior utilizador de água, tanto à escala global, como à escala nacional. Esta constatação, que muitas vezes e feita em tom crítico e induz um preconceito de mau uso, não deveria apanhar ninguém de surpresa: afinal, estamos a falar da atividade económica que garante a alimentação aos mais de 7 mil milhões de habitantes do nosso planeta. Será difícil imaginar uma utilização mais nobre de um recurso natural tão valioso como é a água.

No caso concreto do nosso pais, e dependendo das fontes consideradas, a Agricultura e responsável pela utilização de cerca de 75% do volume anual de água utilizada, seguindo-se a produção de energia (com cerca de 14%), o consumo urbano (com 6%) e, finalmente, o uso industrial (com os restantes 4%). Vale a pena referir, a este propósito, que em Portugal apenas se mobilizam anualmente, nestes processos de utilização, cerca de 20% das disponibilidades totais de água doce, pelo que estamos, felizmente, muito longe de ter um problema estrutural sério de escassez em termos nacionais.

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para chamar a atenção para algumas particularidades que caracterizam a utilização de água na agricultura, pois elas são, em meu entender, determinantes para o tipo de abordagens e de análises sobre a matéria.

Em primeiro lugar, vale a pena ter presente que a utilização de água para regadio e a utilização mais “natural” que a água pode ter, pois é um uso que se integra naquilo que poderemos designar por “ciclo natural da água”. De facto, na natureza, a água precipitada sofre um de três processos: (1) ou escorre superficialmente, acabando por se infiltrar, (2) ou se infiltra imediatamente no solo, a partir do qual a vegetação natural a absorve como elemento essencial para os processos fisiológicos do seu crescimento e desenvolvimento ou, finalmente (3) e percolada, após infiltração, para zonas mais profundas do subsolo, indo alimentar os lençóis freáticos subterrâneos.

De facto, do volume de água de rega distribuído sobre uma parcela, apenas uma parte é efetivamente utilizada pelas plantas, pois para que tal aconteça é necessário garantir um teor de água no solo que permita essa absorção. Este teor, que varia com as características do solo, situa-se entre os níveis determinados pelo coeficiente de emurchimento e a capacidade de campo.

Daqui resulta uma primeira constatação importante: uma parte significativa (que podemos estimar em cerca de 30%) da dotação bruta de rega corresponde a água que permanece no solo, sem alterações significativas de qualidade3, e que ira percolar-se ao longo do perfil alimentando os lençóis freáticos.

Adicionalmente, e quando estamos a falar de águas superficiais (recolhidas em albufeiras, pequenas barragens ou charcas) devemos ter em conta o importante papel que a sua recolha tem na recarga dos aquíferos. Por último, vale a pena não perdermos de vista duas outras características importantes do regadio. Por um lado a constatação de que, uma vez salvaguardados os níveis de caudais ecológicos dos cursos de água, o armazenamento das águas superficiais em albufeiras ou outro tipo de reservatórios, evita o transporte para o mar de um volume de ámuito significativo que deixaria de ser utilizável. Por outro, o papel diversificado que os aproveitamentos hidroagrícolas desempenham, o que levou aliás a necessidade recente de reclassificar muitos deles como Empreendimentos de Fins Múltiplos.

À laia de conclusão sobre este ponto, constata-se que, apesar de a agricultura ser, de facto, o maior utilizador de água em Portugal (e no mundo), o volume efetivamente consumido é claramente inferior ao volume utilizado no processo de rega. Para além disso, e graças ao regadio, existem diversas externalidades positivas que, com frequência, não são valorizadas nas análises sobre a matéria.

2. O regadio – necessidade e condição de sucesso para a agricultura

O sucesso empresarial da agricultura portuguesa depende, em muito elevado grau, da existência de regadio. Esta realidade, com frequência desconhecida de muitos setores da sociedade portuguesa, pode ser constatada de diversas formas. Em primeiro lugar através da comparação das principais variáveis climáticas que caracterizam o nosso território, e de cuja conjugação depende o potencial produtivo da generalidade das espécies vegetais.

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Como resulta claro da figura anterior, o desencontro geográfico entre os mais elevados níveis de radiação e temperatura e a precipitação geram deficits hídricos que, em grande parte do território, são claramente superiores a 30%.

Se, a este desencontro geográfico, somarmos a sua variação dessas variáveis, facilmente concluímos que quando temos temperatura e luz não temos água, e vice-versa. A única forma de ultrapassar esta realidade é fornecendo água às plantas durante a primavera e o verão, alcançando-se assim níveis de potencial produtivo muito mais elevados, e mais compatíveis com as circunstâncias e mercado.

Uma segunda via que nos permite constatar da imprescindibilidade de água para a nossa agricultura passa por identificar as principais fileiras agroalimentares de sucesso e perceber que todas elas estão altamente dependentes do regadio. De facto, fileiras como a do azeite e da vinha, a do tomate para indústria e outras hortícolas e hortoindustriais, a das flores, a das frutas (incluindo a das nozes e amêndoas) e até mesmo a do leite e laticínios, estão assentes em atividades de regadio.

Finalmente, uma terceira forma de constatar a importância do regadio, e olharmos para as características das explorações agrícolas do nosso país. De facto, o Recenseamento da Agricultura de 2009 diz-nos que Portugal dispõe de 3,7 milhões de hectares de superfície agrícola utilizável, sendo a área irrigável (isto e, aquela que beneficia de disponibilidade de água para rega) de cerca de 540.000 hectares (15% da SAL). Mas se olharmos para o número de explorações que tem regadio (em maior ou menor escala), essa percentagem sobre para 54% do total (157.000 explorações).

Constatada a necessidade do regadio de forma a criar condições que possam potenciar a competitividade da nossa agricultura, a questão que se poderia colocar era se faz sentido Portugal procurar estas condições, ou seja, se é necessário produzirmos alimentos em Portugal.

A nossa sociedade, crescentemente urbana e muitas vezes alheada dos processos que conduzem à presença dos alimentos a sua mesa, despertou para este problema com a crise a alimentar de 2007 e 2008. Não tenho dúvidas que o nosso país deverá procurar criar condições que lhe garantam, no seio de um espaço europeu solidário, a capacidade de produzir as matérias primas alimentares para as quais está mais vocacionado. Mas para além disso, e porque não somos uma ilha, teremos também a oportunidade de contribuir para aquele que se espera venha a ser, no médio prazo, o aumento das necessidades alimentares à escala mundial, decorrente essencialmente de dois fatores: o aumento da população mundial para os 9 mil milhões de pessoas até 2050, e o imperativo ético e moral de acabar com a fome (estima-se que atualmente cerca de 1000 milhões de pessoas passem fome).

A FAO estima que será necessário que a produção de bens agrícolas de base alimentar aumente entre 60 e 70% para garantir uma alimentação satisfatória (acima das 3.070 kcal/pessoa.dia) dos 9 mil milhões de pessoas que habitarão a terra em 2050. Ainda de acordo com a FAO, este aumento de produção de produtos agrícolas terá que acontecer maioritariamente com recurso às áreas que estão atualmente em produção, uma vez que a entrada de novas áreas em produção deverá ser limitada. Mais uma vez, tanto à escala global como à escala nacional, o regadio terá um papel fundamental na garantia da satisfação das necessidades alimentares que se projetam. Finalmente, merece-nos ainda referência à relação entre o regadio e o processo de alterações climáticas.

Em relação às plantas, as alterações climáticas, nomeadamente o aumento da concentração de CO2 atmosférico e da temperatura do ar, têm, em particular, repercussões no seu processo de transpiração, interferindo por isso no uso de água.

Para além disso, as alterações climáticas afetarão igualmente a qualidade e a quantidade de água disponíveis em cada região e em cada momento do tempo.

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Assim sendo, uma das primeiras consequências das alterações climáticas na agricultura de regadio será a necessidade de se evoluir cada vez mais na melhoria da eficiência das tecnologias de rega utilizadas. Isto passará inevitavelmente por alterações a dois níveis: melhoria da eficiência de rega ao nível da parcela (equipamentos, solos, clima, tecnologias de informação) e melhoria da eficiência na gestão das massas de água (tanto superficiais como subterrâneas).

É aliás relevante que os principais objetivos traçados em termos da estratégia nacional para as alterações climáticas, no que à agricultura diz respeito, sejam o reforço da segurança da disponibilidade de água, a gestão da procura de água e o aprofundamento do conhecimento. Também em termos europeus (Livro Branco sobre as Alterações Climáticas, CEC 2009), e em relação à agricultura das regiões do Sul da Europa, aponta-se a falta de água e o risco de desertificação como o foco de esforço que deverá ser privilegiado.

Ou seja, e como abordarei mais à frente a propósito das políticas públicas de regadio, reconhece-se a imprescindibilidade da água para a agricultura, mas pretende-se ser mais exigente na qualidade da sua utilização. De notar que, de acordo com diversos estudos internacionais, o regadio apresenta dois efeitos essenciais neste domínio: por um lado é uma forma eficaz de mitigar os efeitos do processo em curso, por outro permite desacelerar os efeitos desse mesmo processo.

3. Regadio e sustentabilidade4

A palavra “sustentabilidade” entrou com tal força no vocabulário corrente, que se corre o risco de a utilizar com pouca consciência do seu significado. Derivada do latim (sustinere), pela conjugação dos vocábulos sus (em cima) e tenere (manter), o sentido que ela aqui assume e o que lhe passou a ser conferido desde a publicação, em 1987, do Relatório da Comissão Brundtland (Designação comum dada a World Commission on Environment and Development (WCED), que ficou conhecida pelo nome do seu chairman, Gro Harlem Brundtland, criada pelas Nações Unidas em 1983, como expressão das crescentes preocupações sobre a acelerada deterioração do ambiente humano e dos recursos naturais, e as consequências dessa deterioração para o desenvolvimento económico e social): uma prática sustentável e toda aquela que garante a satisfação das necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades.

E um conceito que resulta da intersecção de três pilares: o económico, o ambiental e o social. A sustentabilidade e uma característica que resulta da conjugação de três condições: ser viável, enquanto capacidade ou possibilidade de algo se manter ao longo do tempo; garantir equidade, enquanto capacidade de manter justiça e igualdade na distribuição; e ser suportável, enquanto capacidade de serem suportados os custos a ela associados.

A noção de sustentabilidade envolve, portanto, variáveis do domínio da Economia, enquanto corpo do conhecimento que estuda a afetacao de recursos escassos a diversos fins alternativos. Em concreto, e neste domínio, a sustentabilidade depende da relação entre o valor dos recursos que são afetos a determinado processo produtivo (valor esse designado por custo) e o valor dos bens ou serviços por ele gerado, bem como dos meios financeiros que tenham que ser disponibilizados para tal fim.

Relaciona-se igualmente com o domínio do Social, pois envolve não só a satisfação das necessidades de diferentes gerações, como a equidade que exista nessa satisfação. Envolve, por último, variáveis do domínio Ambiental, uma vez que os diferentes processos produtivos não só utilizam os recursos naturais, como tem frequentemente impacto sobre a qualidade desses mesmos recursos, mesmo que em parte eles sejam devolvidos ao ambiente de onde foram retirados.

Dito isto, poder-se-á concluir que refletir sobre a sustentabilidade do regadio não é mais do que ter em conta o conjunto de aspetos que possam interferir sobre a capacidade que a agricultura de regadio demonstra em contribuir para a satisfação das atuais necessidades dos homens (alimentares e não só), sem comprometer a disponibilidade dos recursos (água, solos, energia, ambiente) de que as gerações vindouras necessitarão para virem a suprir as suas próprias necessidades.

Esta reflexão levanta, pois, um conjunto de questões, cujas respostas deverão ser procuradas tanto a um nível global, quando se fala nas políticas públicas que condicionam o regadio numa região (incentivando ou restringindo a sua prática), como a um nível local, quando se encara a possibilidade de utilizar tal tecnologia. Na pratica, esse conjunto de questões poderá, de forma um pouco simplista, ser reduzido as seguintes:

‒ E, o regadio, uma tecnologia útil e necessária a satisfação das necessidades das gerações atuais? Esta questão, pelo que escrevi no ponto anterior deste texto, merece uma resposta inequivocamente positiva.

‒ A forma como, em cada caso, se utilizam os recursos necessários ao regadio, coloca em causa a possibilidade das gerações futuras virem a satisfazer as suas necessidades?

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Esta segunda questão engloba duas dimensões que deverão ser consideradas. Por um lado a água, enquanto recurso distintivo das tecnologias de regadio. Os usos que hoje se fazem da água para rega deverão, ao abrigo da preocupação da sustentabilidade desta prática, preservar a sua disponibilidade futura, tanto em termos quantitativos como em termos qualitativos. Muitas vezes, e no domínio quantitativo, este é um fator importante, confunde-se utilização de água com consumo de água. São, no entanto, duas realidades distintas. De facto, nem toda a água que é utilizada na rega e consumida pelas plantas: uma parte é evapotranspirada (sendo devolvida ao ciclo da água no seu estado mais puro), outra infiltra-se ao longo do perfil do solo (recarregando os aquíferos, num estado de qualidade que depende das circunstâncias) e, finalmente, outra é consumida pelas plantas. É no entanto desejável, e perfeitamente possível à luz do caminho já percorrido, que as práticas de regadio conduzam quer a um melhor nível de eficiência de utilização do recurso, com tradução no aumento de produção por cada m3 de agua utilizada (por exemplo pela diminuição das perdas nos sistemas de captação, armazenagem e distribuição, pela escolha mais adequada dos sistemas de rega as diferentes culturas, pela melhor manutenção desses sistemas garantindo maior uniformidade na distribuição da água pela parcela, e pela adequação do calendário de rega as necessidades efetivas das plantas); Por outro lado, os restantes recursos que, para além da água, são necessários para a prática de agricultura de regadio. De entre eles destacam-se, pela importância que assumem, o solo e as suas caracteristicas (quantitativas e qualitativas) e a energia. O regadio permite a sua gestão sustentável? Não tenho quaisquer duvidas de que a resposta é afirmativa, desde que sejam utilizados os conhecimentos e as técnicas disponíveis para o efeito.

Para terminar este ponto, gostaria de enfatizar a importância social do regadio. E as evidências aí estão para o relevar: quanto maior é o peso da agricultura de regadio numa região rural (aqui entendida como o conjunto de concelhos com uma percentagem da Superfície Agrícola Utilizada – SAU - na Superfície Total superior a 8%, exceto os que apresentem simultaneamente uma densidade demográfica superior a 1000 habitantes por km2, e uma percentagem de população ativa agrícola no total inferior a 5%; inclui, para além disso, os concelhos que, apesar de terem menos de 8% de SAU na Superfície Total, apresentem uma percentagem de população ativa agrícola no total superior a 5), maior e a dinâmica socioeconómica do conjunto dos concelhos que a integram. Esta afirmação exprime uma importante conclusão de um estudo elaborado em 2004 para o Ministério da Agricultura, coordenado pelo Professor Francisco Avillez.

De facto, e com base num conjunto de indicadores socioeconómicos bem definidos (Indicador de variação da população, Indicador de densidade demográfica, Indicador de envelhecimento e Indicador de qualificação profissional), tentou-se estabelecer a correlação entre o seu valor em diversas regiões do país e a importância do regadio nessas mesmas regiões (definida pela importância relativa da superfície regada na superfície total). Do estudo referido, resulta muito clara a correlação entre a importância do regadio na região e o respetivo nível de desenvolvimento socioeconómico, traduzida pelos seguintes traços:

‒ Menor decrescimento ou, em alguns casos, crescimento da população residente;

‒ Maior densidade demográfica;

‒ Menor envelhecimento;

‒ Maior qualificação profissional;

‒ Maior nível de poder de compra;

‒ Menor dependência do emprego agrícola.

Ou seja, o regadio e importante nas economias locais dos núcleos rurais, contribuindo para a fixação da população e para o aumento do seu rendimento, mas, em contrapartida, as comunidades de regantes, e os próprios regantes sofrem, junto dos grandes agregados populacionais, uma forte pressão urbanística que, em muitos casos leva ao abandono dos terrenos agrícolas de regadio. Daqui não se extrai uma relação causa-efeito entre o regadio e o desenvolvimento socioeconómico. Haverá, certamente, um conjunto de fatores mais amplos e complexos, que poderão explicar o maior ou menor desenvolvimento das regiões em causa. No entanto, não deixa de ser particularmente significativo, que a presença de regadio seja um bom indicador (ou marcador) do desenvolvimento socioeconómico de uma região.

4. Água e agricultura – que políticas públicas 

Procurei, nos pontos anteriores, evidenciar a bondade do desenvolvimento, em Portugal, uma política sólida e consistente de dinamização do regadio, baseando-me, por um lado na sua necessidade para que a agricultura portuguesa alcance níveis de competitividade adequados e, por outro, no contributo positivo que ele confere a sociedade e ao território do nosso país.

Gostaria, neste último ponto, de apontar aqueles que são, no meu entender, os grandes desafios das políticas públicas de regadio, visando assim identificar os principais pilares sobre os quais elas deverão ser edificadas.

O aumento da área de regadio

Em primeiro lugar, e no que diz respeito aos grandes desafios do regadio, aponto a necessidade de expandir as áreas regadas, disponibilizando água de forma crescente e equilibrada. Este desafio não deverá, assumir-se de uma forma cega, com aumentos da área infraestruturada para rega custe o que custar, mas sim com base na real aptidão dos solos para a utilização destas tecnologias de regadio.

Com este objetivo, realço a importância do documento de orientação governamental5, denominado “Estratégia para o regadio público 2014-2020”, no qual são identificados de uma forma bastante exaustiva os diversos potenciais projetos para novas áreas regadas, e se define um conjunto de critérios que visam permitir a sua conveniente hierarquização. Neste documento são identificados cerca de 70.000 ha de novas áreas com potencial interesse (incluindo-se neste numero a área já identificada pela EDIA para uma eventual expansão do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva), sendo que, para a sua maior parte, devera ainda ser efetuada uma análise mais detalhada do seu real interesse no âmbito de qualquer uma das três dimensões essenciais – económica, ambiental e social. O documento em referência, elaborado para um horizonte temporal de 6 anos, visa o aproveitamento articulado dos fundos comunitários veiculados através do PDR com destino ao regadio.

Nesta matéria, e salvaguardada a respetiva capacidade financeira, perfilho da opinião que o Estado deverá manter a liderança da iniciativa das obras hidroagrícolas, dado o seu evidente impacto no desenvolvimento regional e alguma complexidade da sua componente ambiental.

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Relativamente aos regadios privados, área omissa no documento a que acima fiz referência, penso que e essencial desenvolver um trabalho de definição idêntico. Por um lado porque a maior parte do regadio (leia-se captação de água) existente em Portugal e de origem privada (mais de 60% da área regada) é essencialmente baseada em captações de água subterrânea. Por outro lado porque os impactos ambientais deste tipo de captações são muitas vezes, na sua própria natureza, distintos dos que decorrem das iniciativas públicas baseadas em armazenamento de água superficiais.

Vale a pena aqui referir, para concluir esta dimensão do problema, duas questões que se constituem como desafios a enfrentar:

- a imperiosa necessidade de articular o licenciamento das captações privadas em áreas beneficiadas por aproveitamentos hidroagrícolas públicos, de forma a não comprometer o sucesso destes por menor adesão dos regantes a utilização da água por eles fornecida;

- o interesse que poderá ter, em certas regiões irrigadas partir de captações

subterrâneas (de que é exemplo ilustrativo o campo da Golegã), ensaiar um projeto piloto que confira a uma associação de utilizadores (neste caso uma associação de regantes) a cogestão da massa de água subterrânea em questão, com todas as vantagens inerentes a monitorização e controlo do seu estado quantitativo e qualitativo.

A requalificação dos regadios existentes

A par com a preocupação de expandir a área infraestruturada, penso que as políticas públicas não podem descurar a dimensão da requalificação dos regadios existentes. De facto, muitos dos perímetros públicos de rega foram construídos ate aos anos 70-80 do século passado. Este facto tem duas consequências: por um lado utilizam tecnologia menos vocacionada para uma maior eficiência da captação, armazenamento e distribuição de água e, por outro, apresentam-se mais ou menos degradados com todas as consequências que tal acarreta quer em termos de custos de manutenção quer em redução desses mesmos níveis de eficiência (elevadas perdas ao longo dos circuitos).

A par da requalificação dos aproveitamentos, refira-se igualmente a necessidade das intervenções em termos de garantir a segurança das barragens.

A “Estratégia para o regadio público 2014-2020” identifica ambas as preocupações (requalificação e segurança), definindo igualmente critérios que visam permitir a seleção das intervenções prioritárias nesta matéria.

O aumento da eficiência do uso de água para rega

Este e, em minha opinião, o grande desafio de uma política pública de regadio: induzir aumentos significativos dos níveis de eficiência de utilização da água. Este desafio encerra um duplo objetivo: dimensionar, para o estritamente necessário, os volumes de água utilizados e reduzir os custos associados a sua utilização, aumentando, consequentemente, a competitividade das atividade de regadio.

Importa aqui realçar muito do que de positivo se tem feito nesta matéria no nosso país:

- em primeiro lugar, constatar o caminho percorrido pelos regantes nos últimos anos; de facto ao longo da primeira década deste século (2000-2010) os consumos médios de água diminuíram de 10.763 m3/ha para 7.239 m3/ha, evidenciando uma redução de cerca de 33%; neste mesmo período, constatou-se um aumento da produtividade económica da água (medida em termos de VAB/m3 de agua) em mais de 40%;

- em segundo lugar, referir o grau de pioneirismo que o nosso pais apresenta em matéria de políticas de incentivo ao uso eficiente da água, com a aprovação e entrada em vigor da medida agroambiental do “Uso eficiente da agua” (no âmbito do PDR 2020); de forma simples, e um primeiro e importantíssimo passo no sentido da certificação dos processos de rega, qualificando-os em duas classes (A e B) a que estão associados dois níveis de eficiência (para além dos que não se qualificam). O princípio da medida e o da compensação (embora parcial) dos custos associados a adoção de práticas de rega eficientes (inspeção de equipamentos, plano de rega elaborados de acordo com os balanços hídricos, leitura permanente da informação meteorológica e dos níveis de água no solo, avisos de rega semanais) ao longo de 5 anos para que, findo esse período, tais práticas possam ser tornadas obrigatórias.

Estou em crer que, se tais esforços puderem ser continuados, a eficiência na utilização de água para rega (tanto na sua distribuição como no seu uso) continuara a aumentar de forma significativa.

O princípio do utilizador pagador e a sua aplicação a agricultura de regadio

Em Portugal - seguindo uma tendência mais geral a nível Europeu - tem-se assistido, ao longo das últimas duas décadas, a uma crescente tomada de consciência de que água e um bem escasso (no sentido económico do termo).

Tal consciência esteve na origem do aparecimento da Diretiva Quadro da Agua (Diretiva 2000/60/CE, de 23 de outubro), transposta para o Direito Português através da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro – Lei da Água.

No seu artigo 3.º, a Lei da Água estipula três princípios que deverão orientar a gestão deste recurso, cada um deles consagrando um dos três pilares em que assenta a noção de sustentabilidade:

• O Princípio do valor social da água, que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão;

• O Princípio da dimensão ambiental da água, nos termos do qual se reconhece a necessidade de um elevado nível de proteção da água, de modo a garantir a sua utilização sustentável;

• O Princípio do valor económico da água, por força do qual se consagra o reconhecimento da escassez atual ou potencial deste recurso e a necessidade de garantir a sua utilização economicamente eficiente, com a recuperação dos custos dos serviços de águas, mesmo em termos ambientais e de recursos, e tendo por base os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador.

A Lei da Água consagra um regime económico e financeiro (Decreto-Lei n.º 97/2008) que promove, designadamente:

• A internalização dos custos decorrentes de atividades suscetíveis de causar um impacte negativo no estado de qualidade e quantidade de água e, em especial, através da aplicação do princípio do poluidor-pagador e do utilizador-pagador;

• A recuperação dos custos das prestações públicas que proporcionam vantagens aos utilizadores e que envolvam a realização de despesas públicas, designadamente através das prestações dos serviços de fiscalização, planeamento e de proteção da qualidade das águas;

• A recuperação dos custos dos serviços de águas, incluindo os custos de “escassez”. A aplicação deste princípio faz-se através da aplicação da taxa de recursos hídricos - TRH - e das tarifas dos serviços de aguas - TSA.

A filosofia subjacente a essas duas componentes remete para o facto de o custo dos serviços da água ser, tipicamente, inferior ao valor efetivo da água (em termos marginais e totais), dado que existem um conjunto de benefícios e custos externos (externalidades) não incorporados no mecanismo de preços.

A taxa de recursos hídricos - TRH - tem como objetivo ultimo internalizar esses benefícios e custos no preço da agua. Desta forma, operacionaliza, por um lado, as externalidades positivas associadas a utilização do bem público água e, por outro lado, as externalidades negativas decorrentes de atividades poluidoras ou outras prejudiciais para o domínio hídrico. Tem, por isso, duas bases de incidência objetiva claramente separadas:

• A utilização privativa de bens do domínio público hídrico, tendo em atenção o montante do bem público utilizado e o valor económico desse bem;

• As atividades suscetíveis de causarem um impacte negativo significativo no estado de qualidade e quantidade de água, internalizando os custos ambientais associados a tal impacte e a respetiva recuperação.

Enquanto recurso escasso, a valorização económica da água para rega deverá ser expressa com base no respetivo preço. Este preço, que deverá traduzir o grau de escassez do recurso, resultara sempre da conjugação de três fatores:

• Dos custos totais decorrentes das respetivas componentes social, ambiental e económica, isto e, do custo da água na ótica da oferta;

• Da disposição a pagar pela água de rega por parte dos seus utilizadores, isto é do benefício gerado pela água na ótica da procura;

• Das políticas públicas que, visando objetivos bem definidos, regulem as condições de oferta e procura de água para rega, isto e, das intervenções que possam interferir na relação entre a disposição a pagar e o custo da água, uma vez que só existirá mercado se a primeira for maior do que a segunda.

O custo da água para rega deverá, assim, no espírito e na letra da Lei da Água e do seu regime económico e financeiro, contabilizar as diferentes componentes de custo associadas a captação, armazenamento e distribuição da água de rega ate à entrada da parcela, incluindo as respetivas componentes ambientais e de escassez.

Torna-se evidente que o preço da água a praticar em cada situação será forçosamente função de um conjunto de opções de política, que estarão essencialmente ancoradas aos seguintes aspetos:

• O preço da água devera resultar dos valores das três componentes principais do custo da água (investimento, manutenção e exploração necessários a sua disponibilização). Esse preço deverá, sempre que existam elementos para tal, ser ajustado (de forma positiva ou negativa) pelos coeficientes ambientais e de escassez, de modo a internalizar esses custos externos no mecanismo de preços.

• Definição de quais as componentes do custo da água que irão ser internalizadas no preço da água; esta opção, claramente política, poderá conduzir a valores mais elevados (inclusão das totalidade das três componentes, ou sucessivamente mais reduzidos, ao excluir os custos de investimento, os custos de manutenção e, eventualmente, parte dos custos de exploração, deixando apenas, por exemplo, incluídos os custos energéticos), com a consequente subsidiação do preço da água.

• A forma como são definidos e a gama de valores a atribuir aos coeficientes de escassez e ambiental (que internalizam tais dimensões no preço da água) constitui, igualmente, uma opção de política.

Com base no trabalho e análises desenvolvidas no âmbito de trabalhos recentes, nomeadamente nas componentes da Análise Económica dos Usos da Água para o regadio, que fazem parte integrante dos Planos de Gestão de Bacias Hidrográficas em que o autor participou, é possível afirmar que, na sua generalidade, os tarifários praticados na generalidade dos perímetros públicos de rega portugueses não são suficientes para promover a recuperação dos custos totais (incluindo as suas componentes ambiental e de escassez) associados a disponibilização da água para rega.

Já no que diz respeito as captações privadas, esta questão não se coloca da mesma forma, uma vez que os investimentos, a manutenção e a exploração das captações decorrem, na sua componente não subsidiada, por conta dos respetivos promotores.

Estes ficam apenas sujeitos ao pagamento da – TRH - para ficarem em cumprimento do estabelecido no regime económico e financeiro da Lei da Água. No entanto, este facto deverá ser analisado com alguma cautela e bom senso, tendo em conta, entre outros, os elementos que a seguir se apresentam.

Em primeiro lugar, e pela importância socioeconómica que o regadio desempenha, o regime económico e financeiro da Lei Quadro da Água deverá ser implementado com bom senso.

Em Portugal, existem inúmeras situações em que, numa aplicação estrita, as atividades agrícolas de regadio não conseguem remunerar de forma adequada a água que utilizam (leia-se, de forma a recuperar a totalidade dos custos associados a sua captação, armazenamento e distribuição). Tal facto aconselha a que não se procure o aumento do nível de recuperação destes custos através de um puro aumento dos níveis de tarifários praticados. Se assim se fizesse, e com base num raciocínio económico simples, o conjunto de atividades em causa deixaria de ser praticado, permanecendo apenas aquelas que, pelos níveis de benefício gerado, apresentam maior competitividade no uso da água.

Esta eventualidade teria repercussões complicadas de resolver, mesmo sob o ponto de vista de gestão da água. De facto, as atividades com maior capacidade de remunerar a água (culturas hortícolas, tanto em estufa como ao ar livre, culturas hortoindustriais, pomares, vinha e olival), são igualmente aquelas que maiores pressões exercem, não só sobre a quantidade de água, como também sobre a sua qualidade (maiores incorporações de agroquímicos). O caminho a percorrer devera pois centrar-se mais na redução dos custos de gestão, bem como na melhoria das condições de funcionamento das infraestruturas de rega (como por exemplo os Aproveitamentos Hidroagrícolas).

Em segundo lugar, como já foi inicialmente referido, e preciso ter presente que os números que muitas vezes se apresentam para retratar os “volumes de água associados a rega” prestam-se frequentemente a alguma confusão. Neste domínio dever-se-ão distinguir três níveis de “utilização”:

• Um primeiro tem a ver com o volume de água captado para rega (quer se trate de captações subterrâneas, como os furos ou os poços, quer de captações superficiais, como os rios e albufeiras).

• Deste volume, apenas uma parte e utilizada pelos agricultores nas suas explorações - volume distribuído. A diferença entre as duas, que traduz um conjunto de perdas com as mais diversas causas e origens (evaporação, ruturas nas condutas de distribuição, etc.), e tendo em conta a realidade nacional neste início da 2a década do século XXI, rondara cerca de 30%. E maior nos Aproveitamentos Hidroagrícolas mais antigos (com distribuição de água por gravidade, em condutas abertas, e muitas vezes, bastante degradadas) e menor na generalidade das captações privadas (nomeadamente nos furos) e nos Aproveitamentos Hidroagrícolas mais modernos (com distribuição da água sob pressão em conduta enterrada). Este volume “perdido” e, de facto, imediatamente devolvido ao ambiente, eventualmente noutra forma física e em local geográfico distinto.

• Para além destes dois níveis (volume captado e volume distribuído), existe ainda o volume de água que e efetivamente utilizado pelas culturas - volume utilizado.

Para além de algumas percas que existam dentro das explorações (do mesmo tipo das anteriores), há uma parte maior ou menor do volume distribuído as culturas que não vai ser por elas utilizado. E, neste ponto, entra-se no domínio da eficiência da rega (equipamento e sua gestão), que será abordado em capítulos posteriores. No entanto, se uma cultura utilizar apenas 80% da água que for distribuída em regime de regadio ao longo do seu ciclo, isso significa que, tal como na situação anterior, 20% da água vai ser devolvida ao ambiente, quer pelos processos normais de evapotranspiração, quer por infiltrações em profundidade ao longo do perfil dos solos, quer ainda por escoamento superficial.

Ora, tendo em atenção que a - TRH - e cobrada sobre o volume de água captado, torna-se necessário e urgente direcionar esforços em dois sentidos:

• No aumento da eficiência de todo o sistema, desde a captação até às raízes das plantas;

• Na contabilização dos volumes de água que são efetivamente utilizados pelas plantas;

• Na contabilização da restante como água “devolvida” a natureza em bom estado de uso e, como tal, não suscetível de incidência de - TRH. Embora com limites, esta situação esta prevista na Lei da Água. O ponto anterior leva a um terceiro elemento importante. Na letra e no espírito da Lei da Água, o preço a fixar para a sua utilização deverá, como já foi dito, permitir a recuperação da totalidade dos custos, incluindo-se nestes a valorização de eventuais externalidades positivas que decorram da sua utilização (custos negativos). Que essas externalidades existem, é relativamente inquestionável. Alguns exemplos podem ser dados:

• A existência de certas albufeiras só é uma realidade por causa do regadio, mas hoje são importantes elementos, não só de uma paisagem que se pretende conservar, como também úteis ao consumo doméstico e ao lazer.

• As culturas regadas, em certas circunstâncias, criam descontinuidades na vegetação de extrema importância na mitigação dos fogos.

• São igualmente, em diversas regiões, um elemento importante no ciclo de determinadas espécies animais.

Estes são apenas alguns exemplos, de uma lista bem mais extensa. O grande problema é que a quantificação económica do valor gerado por estas externalidades não é de quantificação fácil. Pensa-se, no entanto, que um esforço grande deve ser desenvolvido neste domínio, tanto mais que se enquadra na questão mais lata da Valorização de Bens Ambientais, muitos destes por sua vez integrados na categoria de Bens Públicos.

Finalmente, um quarto elemento que se considera importante nesta reflexão, e que está em estreita relação com o anterior, e o da discussão da eventual lógica de subsidiação da água face a valores de interesse nacional, regional ou local.

Como já deixei explícito, o papel que o regadio desempenha em Portugal, vai muito para além do campo estrito da produção. Constitui-se como um elemento estreitamente relacionado com o desenvolvimento socioeconómico das regiões, que poderá fazer sentido estimular. Também a questão da segurança alimentar, cujo valor ganhou dimensão inusitada face a crise alimentar recente, poderá justificar decisões políticas que vão no mesmo sentido. Refira-se que a subsidiação da água para certos fins não tem que ter obrigatoriamente reflexo no tarifário, mas poderá passar, por exemplo, pelo assumir por parte da sociedade da obrigação de manter em bom estado de funcionamento um conjunto de estruturas hidroagrícolas, capazes de entrarem em funcionamento imediato. Corresponde ao conceito de contributo para uma reserva de alimentos, não nos silos ou armazéns, mas numa estrutura produtiva que lhes poderá dar origem no curto prazo.

Notas de Rodapé:

1Texto que serviu de base a comunicação oral com o mesmo título no “COPPA2 -2ª conferência sobre políticas públicas da água”, promovido pela APRH no dia 10 de dezembro de 2015

2Professor do Instituto Superior de Agronomia e Coordenador Técnico e Científico da AGRO.GES - (fgsilva@isa.ulisboa.pt)

3Excetuam-se os casos em que tal volume de água vê o seu estado qualitativo alterado por efeito da poluição difusa de origem agrícola, situação muito pontual e localizada no nosso país (ver, a este propósito, a Diretiva Nitratos e a definição das respetivas “zonas vulneráveis”).

4Esta parte do texto segue o conteúdo do capítulo 2 (Sustentabilidade do regadio) de minha autoria, do Livro “Técnicas de Regadio”, da autoria do Eng. Isaurindo Oliveira.

5http://www.dgadr.mamaot.pt/images/docs/dgadr/Doc_estrategia_regadio.pdf 

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