Nuno Melo: «A PAC não assegurou a coesão e a equidade desejadas»
Nuno Melo, eurodeputado e o único português membro da Comissão de Agricultura no Parlamento Europeu (PE), analisa, em entrevista ao Agronegócios, os desafios da Agricultura portuguesa e reflete sobre um setor que considera «estratégico» para a economia nacional. O deputado europeu manifesta-se preocupado com a nova Política Agrícola Comum (PAC) que, sublinha, mesmo depois da revisão, «não assegurou a coesão, a solidariedade e a equidade desejadas». O Programa de Desenvolvimento Rural 2020 (PDR 2020), o agroalimentar e o fim das quotas leiteiras são outros dos assuntos em destaque nesta entrevista a Nuno Melo.
Agronegócios: Sempre defendeu que a Agricultura é um dos setores que tem ajudado a impulsionar a economia portuguesa. A que se deve este desempenho, essencialmente nos difíceis anos que o país tem atravessado?
Nuno Melo: O que justifica o sucesso óbvio da Agricultura portuguesa nos últimos anos reside no facto de o setor ter sido finalmente encarado de forma estratégica, do ponto de vista da economia, e no qual vale a pena investir. Recordo que houve todo um mundo que mudou entre a Agricultura com Jaime Silva (ministro da Agricultura no XVII Governo Constitucional, liderado por José Sócrates) e o setor dos tempos atuais. No que respeita aos fundos comunitários, a alteração não foi tão relevante como se possa pensar. Porém, na ótica da distribuição de fundos por países, Portugal continua a não ser propriamente dos mais privilegiados. Mas, o que importa salientar é que a Agricultura é vista como um setor estratégico, com importância para a tutela e se transformou num setor atrativo, coisa que antes não o era. E lembro que há uns anos, quando Paulo Portas entrava num qualquer mercado do país, de boina, tratavam-no jocosamente como ‘o Paulinho da Lavoura’, tudo, unicamente, porque era um setor estigmatizado.
AN: Não se tratava apenas de uma arma de arremesso político?
NM: Não era apenas isso. Era um setor estigmatizado e desprestigiante. E, curiosamente, a verdade é que a esquerda sempre desinvestiu na Agricultura. Mas muito mudou…
AN: É verdade, muito mudou. Contudo, será que a fatura política deve apenas ser entregue à esquerda e aos governos socialistas, tendo em conta que, durante décadas sucessivas, a Agricultura ficou esquecida nas gavetas dos ministérios de vários Executivos?
NM: Houve um abandono dos campos para as cidades, essencialmente no começo pós-revolucionário, não só como opção de vida, mas também muito por causa do tal estigma que rejeitava a ruralidade, e que fez com muitos campos fossem abandonados. Por outro lado, muito destes campos, que eram produtivos, acabaram por ser ocupados do ponto de vista urbanístico, e de forma desordenada.
AN: Foram anos perdidos, na sua opinião?
NM: Foi muito assim até ao final dos anos 80, início dos anos 90 do século XX, e havia regiões altamente produtivas do ponto de vista agrícola que deixaram de o ser.
AN: Perderam escala…
NM: Sim, essencialmente porque perderam escala, desde logo naquelas que hoje são caracterizadas pelo minifúndio, mais concretamente no Litoral Norte, por exemplo. Contudo, isso não invalida que esse estigma e esse caráter depreciativo tenha persistido. A verdade é que começou a mudar, porque também a tutela atual viu a Agricultura como um setor estratégico, que cria riqueza, gera emprego e pode ser uma alternativa, mas ao mesmo tempo mais atrativo que outros setores económicos. Estamos a falar de um setor que teve o desempenho conhecido num espaço de quatro anos, com Portugal intervencionado, com um programa de austeridade e com um impacto recessivo.
AN: Precisamente. Nos últimos anos, e de acordo com dados da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), foram investidos mais de sete mil milhões de euros na Agricultura (através do PRODER), permitindo que o setor, em tempos de recessão, tenha crescido e chegado a novos mercados. Como se explica esta evolução rigorosamente ao contrário de outros setores da atividade económica?
NM: Eu dou-lhe um exemplo. Com Jaime Silva na tutela, Portugal devolvia milhões de fundos comunitários todos os meses a Bruxelas. Fundos que necessitávamos, já que naquele tempo havia dificuldades de financiamento. Hoje estamos no topo da tabela ao nível do aproveitamento dos fundos comunitários. Portugal foi um dos poucos países que conseguiu antecipar a aplicação do PDR 2020 - que substitui o PRODER -, exatamente porque, desde o tempo do ministro Jaime Silva até agora, Portugal passou do «país apontado» ao «país bom exemplo».
AN: E isso significa o quê?
NM: Significa que, independentemente do empreendedorismo e da aposta devida de muitos jovens num setor que antes estava abandonado, houve também uma atenção dada pela tutela e um apoio até no plano administrativo, que justificou que tudo acabasse por acontecer. O acesso aos fundos comunitários não acontece apenas e só com um estalar de dedos. Há procedimentos burocráticos aplicados. Há um conhecimento técnico e administrativo que, muitas vezes, os agricultores não têm. É preciso não esquecer todos estes fatores…
«A aposta verde é uma inevitabilidade»
AN: E neste novo quadro de fundos comunitários há essa desburocratização e facilidade de tornar mais simples a vida aos agricultores?
NM: Houve uma simplificação administrativa e burocrática, houve uma aposta estratégica direcionada para jovens que têm de renovar o tecido produtivo dizendo «esta é uma opção de vida e viável». Registou-se também uma intermediação entre os agricultores/produtores e as entidades europeias para aproveitamento dos fundos através dos regulamentos nacionais. Tudo isto permitiu que a Agricultura fosse, ela própria, uma das razões do sucesso possível no tempo da Troika. Porque se a Troika desde maio de 2014 não está em Portugal deve-se, em larga medida, ao desempenho das exportações (com resultados pouco vistos em décadas passadas em setores tradicionais como o têxtil, o vestuário, o calçado, etc.) mas também no Turismo e na Agricultura, que se modernizou, tornou-se mais competitiva e que hoje satisfaz muito do mercado interno e exporta.
AN: Falando do novo PDR 2020, que garante a Portugal oito mil milhões de euros, este novo modelo promove uma Agricultura mais verde e sustentável, já que os pagamentos diretos por hectare ficam condicionados ao cumprimento por parte dos agricultores de práticas agrícolas amigas do ambiente (as medidas greening). Acha que o setor está preparado para este desafio verde?
NM: Do ponto de vista clássico dos custos de produção, a aposta no Ambiente pode ser vista como um risco mas, no plano europeu, é uma inevitabilidade. Estrategicamente, o programa “Horizonte 2020” estabelece a investigação, a empregabilidade e as economias verdes como opção. Percebe-se que a Europa atingiu um patamar de Civilização que nos distingue mas que, ao mesmo tempo, tiveram um impacto no Ambiente que todos sentimos. E está também demonstrado que é possível fazer bem com menos impacto para o Ambiente. E, por isso, do ponto de vista dos fundos, existe esta opção.
AN: Mas será fácil?
NM: Fácil não será, como todas as mudanças culturais. Quando hoje sabemos que o recurso a muitos herbicidas potenciam o aparecimento de doenças graves, designadamente de natureza oncológica, quando muitos deles estão banidos de alguns países da União Europeia (UE), sabemos que o problema tem de ser combatido. É por essa razão também que a Europa dará mais a quem faça melhor. Mas até nesta matéria, atualmente, a renovação do tecido produtivo na Agricultura ajuda. Porque as novas gerações têm no Ambiente perspetivas que outras, no passado, não tinham.
AN: Falando da nova PAC. Na sua opinião, ela coloca ao mesmo nível de justiça todos os agricultores dos 28 Estados-membros?
NM: Não, de modo nenhum. Recordo que a PAC, sendo um dos primeiros sucessos na UE, teve entre vários propósitos, o de acabar com causas de guerras que flagelaram a Europa (desde logo por duas vezes no século XX), além da autonomia alimentar. Foi a PAC que assegurou à Europa essa autonomia. Mas a PAC, mesmo depois da revisão, não assegurou a coesão, a solidariedade e a equidade desejadas e, que dizem, deve ser pilar do processo europeu.
AN: E onde é que Portugal perde mais?
NM: Portugal perde em todos os critérios. Por hectare, por unidade de produção, mas isso não invalida que Portugal não tenha disponível muito dinheiro que possa ser aplicado.
AN: E como se pode minimizar o dano para o país?
NM: O que está a ser feito é tentar corrigir, no plano europeu, esse diferencial, por forma a que os países que hoje são mais beneficiados possam ir reduzindo as suas margens em relação aos outros, e para que se consiga aquilo que é necessário para assegurar todo o setor. Recordo que há uns anos, quando eu defendia no Parlamento Europeu, que Portugal devia ter mais fundos, a resposta que obtinha era só uma: «se Portugal não aproveitava os fundos de que dispõe, não se entende porque reclama outros».
AN: Há cada vez mais jovens a regressar à Agricultura e, muitos casos, em territórios de Baixa Densidade (também uma aposta no PDR 2020). A que se deve este fenómeno e como se pode atrair mais gente?
NM: O ritmo alucinante de vida a que chegamos nas sociedades modernas ocidentais faz com que muitos jovens pensem no futuro de outro modo. As necessidades da geração dos nossos pais eram completamente diferentes das atuais.
AN: Mas estarão preparados? Nalguns casos há quem fale de preocupações ao nível da profissionalização…
NM: Hoje, felizmente, o Estado, transversalmente nas suas instituições, faculta processos de formação para determinadas atividades que facilita essa profissionalização, ao contrário do passado.
AN: Ironicamente ou não o CDS está à frente de dois setores que têm tido desempenhos positivos nestes últimos anos com o país intervencionado: a Agricultura e o Turismo. É pura coincidência?
NM: A Agricultura e o Turismo são duas pastas de sucesso com investimento estratégico. Mas é uma aposta ganha do Governo no seu todo e não apenas do CDS. Vivemos nestes quatro anos de excecionalidade, com uma governação condicionada e reavaliada trimestralmente pelos técnicos da Troika. Conseguir os resultados que são conhecidos nesta conjuntura penso que é muito positivo.
Fim das quotas de leite
AN: Falando do fim das quotas do leite que terminaram no fim de março de 2015. Em Portugal muitos produtores (em regiões como os Açores e o Minho, por exemplo) estão preocupados e falam no aumento dos custos de produção. Pedem apoios suplementares na fase de transição. A concorrência dos grandes produtores europeus, que escoam os seus excedentes para o mercado ibérico, é outra inquietação. Como olha para esta situação?
NM: Em relação ao leite já olho com muita preocupação desde o início da minha legislatura. Recordo que fui eu que fiz o requerimento dirigido ao antigo Comissário da Agricultura, Dacian Ciolos, pedindo que pela primeira vez datasse o momento em que as quotas terminariam. Sempre fui muito crítico em relação ao fim das quotas e apresentei um projeto de resolução para prorrogação do prazo, sobretudo pela preocupação que tinha (e tenho), já que considero ser uma preocupação de legislaturas mesmo.
AN: O que o preocupa?
NM: O impacto. Temos um problema que resulta do fim das quotas mas temos outro problema, que resulta conjunturalmente do conflito da Ucrânia, que devido ao embargo russo (que recebia muito do leite produzido na Polónia e de outros países de Leste), tivesse de ser canalizado para o mercado interno, distorcendo ainda mais este mercado. Além de que os custos de mercado não são os mesmos. Não é a mesma coisa produzir um litro de leite em Vila Nova de Famalicão (em modelo de minifúndio), ou produzir um litro de leite numa grande propriedade, com produções em massa, vocacionadas para as grandes exportações, na Polónia.
AN: Mas esse impacto foi pensado?
NM: Esses impactos, que sempre invocamos, não só em alguns países do sul, e em Portugal com muita firmeza, começam hoje a ser mais percetíveis. Eu acredito que, sendo o fim das quotas uma realidade, alguma coisa será feita a nível europeu para, no fator corretor, corrigir essa assimetria, nomeadamente o impacto negativo que muitos produtores vão sofrer. Até porque muitos deles investiram muito para modernizarem as suas unidades de produção.
Agroalimentar
AN: Falando do agroalimentar. Um dos objetivos do Governo português é chegar a 2020 com equilíbrio da balança comercial no setor. Neste momento o défice agroalimentar rondará os 2,6 mil milhões de euros. Como chegamos lá?
NM: Produzindo para o mercado interno, europeu e intra-comunitário. Como sabe está a ser negociado o Acordo Transatlântico de Comércio Livre (TTIP na sigla em inglês), atualmente em discussão entre os Estados Unidos e a UE, por exemplo. Se não for acautelado nesse fator que distorce um mercado saudável, poderá ser um problema para os produtores nacionais. Mas se (o acordo) for acautelado significará no mercado americano uma potencialidade. Neste momento, em Portugal ainda somos dependentes de muitos produtos. Temos mecanismos de produção razoavelmente obsoletos, nomeadamente no Interior, e práticas que precisam ainda de ser modernizadas. Há, pois, um conjunto de possibilidades que nos permitem acreditar que em Portugal se pode produzir mais, reduzindo importações e vendendo mais fora.
AN: Tem organizado nos últimos anos com a CAP o Congresso de Jovens Agricultores, onde têm sido distinguidos projetos nacionais inovadores. É para repetir este ano?
NM: Sim, em 2015 o Congresso será em julho e é a terceira edição consecutiva.
AN: O que o motivou a lançar esta iniciativa?
NM: Sobretudo mostrar que há jovens com qualidade no setor e que simbolizam a esperança de um futuro melhor. O que sempre pretendemos com este Congresso foi e é permitir que as diferentes organizações agrícolas europeias, a sociedade e os jovens agricultores, vejam no Parlamento Europeu um parceiro forte e proativo na discussão do setor e dos seus agentes. Premiar os melhores, destacar quem faz bem e mostrar que a renovação do tecido agrícola continua a ser uma das maiores preocupações da UE são as nossas intenções com esta iniciativa.