Clima, seca e agricultura intensiva põe em risco rios da Península Ibérica

O alerta não é novo: os grandes rios da Península Ibérica estão a secar e os seus caudais a diminuir devido ao aquecimento global, às secas mais longas e à agricultura intensiva. No último verão, os agricultores de Abrantes e Constância relataram que os níveis do caudal do Tejo estavam mais baixos do que o habitual e que as colheitas estavam a ser afetadas. Já em Espanha, a zona pantanosa do parque nacional Las Tablas de Daimiel está seca e a perder a biodiversidade.

Segundo um estudo divulgado no mês passado, realizado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e o grupo Rios Vivos da Europa, cerca de 90 por cento das bacias hidrográficas analisadas em vários países da União Europeia serão insalubres em 2027. Mas em alguns pontos da Península Ibérica já são sentidos os efeitos do aquecimento global e da agricultura intensiva nos leitos dos rios e na qualidade das águas.

O parque nacional Las Tablas de Daimiel, por exemplo, é um ecossistema único de Castilla-La Mancha, em Espanha, sendo uma das zonas pantanosas e húmidas mais representativas da "La Mancha Húmeda" - um conjunto de áreas alagadas que chegou a ter 50 mil hectares, de acordo com a WWF. Este parque pantanoso depende da água fornecida pelos aquíferos da bacia superior do Rio Guadiana e constitui uma importante área para a conservação da natureza devido à sua vegetação e à quantidade de populações de aves aquáticas migratórias.

Mas agora está seco há quase três anos, os peixes estão mortos, os patos, as garças e os lagostins de água doce desapareceram, assim como qualquer vestígio de vida selvagem.“Tudo o que vemos à nossa volta devia estar debaixo de água”, afirmou ao Guardian Rafa Gosálvez, da Ecologists in Action.

Este pântano de características únicas nas vastas planícies e quase sem árvores, no centro da Espanha, está a desaparecer devido à “sede insaciável da agricultura intensiva”.De acordo com a OCDE, 77 por cento da água usada em Espanha vai para a agricultura. Mas no sudeste do país esse valor sobe para os 85 a 90 por cento, indicou Julia Martínez-Fernández, diretora técnica da Nova Cultura da Água Fundação, que promove o uso sustentável da água.

O que está a acontecer em Las Tablas?

O ecossistema de Las Tablas depende da água das chuvas, do rio Guadiana e de um enorme aquífero, mas a crise climática está a tornar os períodos de seca em Espanha mais longos.

O Guadiana – que nasce em Espanha e atravessa Portugal até desaguar no Atlântico - está a secar e a agricultura está a esgotar os recursos do aquífero e a poluir as águas subterrâneas com fosfatos e outros fertilizantes químicos. Já em 2009, o pantanal de Las Tablas estava tão seco que eclodiram incêndios subterrâneos de turfa – material de origem vegetal, parcialmente decomposto e geralmente encontrado em zonas pantanosas.

Atualmente, os três mil hectares de Las Tablas são tudo o que resta do que já foi um sistema de 50 mil hectares de pântano em Castilla-La Mancha.

A água necessária para irrigar as vinhas, as oliveiras, a agricultura de pistácios, cebolas e melões da região excede os recursos disponíveis e, a menos que haja vários anos de chuvas fortes, a zona húmida só pode ser salva com a transferência de água do rio Tejo – que também está a ser sobreexplorado pela agricultura e que quase secou há quatro anos.

Rafa Gosálvez explicou que o grande problema começou na década de 1970, quando o Governo espanhol quis transformar Murcia e Almería, no sudeste de Espanha, na horta da Europa. Mas não havia água.

A região do sudeste espanhol é árida e nenhum dos três principais rios do país passa perto dessa zona. O Douro e o Tejo nascem no centro-norte da Espanha e fluem para oeste, no Atlântico, e o Ebro sobe a noroeste e desagua no Mediterrâneo, quase 400 quilómetros a norte de Múrcia. Na altura, a solução foi a de transferir água das cebeceiras do Tejo através de condutas de cerca de 300 quilómetros para irrigar a zona árida do sul.

No entanto, esta solução não apenas satisfez o plano da “horta da Europa”, como serviu para incentivar a agricultura intensiva insustentável que levou à exploração de águas subterrâneas, com consequências ambientais desastrosas.

No último verão, por exemplo, apareceram milhares de peixes mortos a flutuar no Mar Menor, uma lagoa de água salgada em Murcia, outrora conhecida pelas suas águas cristalinas, resultado de fertilizantes que estão a poluir as águas subterrâneas que drenam para o mar.

“O desastre do Mar Menor é o resultado de uma agricultura intensiva que continua a expandir-se de uma maneira não sustentável, tanto em Murcia como em muitas outras regiões de Espanha”, disse ao jornal britânico Martínez-Fernández.

“Mar de plásticos”

Na região de Almería - onde as estufas que formam o famoso “mar de plástico” são visíveis do espaço – produz-se cerca de 3,5 milhões de toneladas de pimentão, tomate, pepino e melão por ano e, juntamente com Granada, abastece cerca de 50 por cento do mercado europeu. Paralelamente à produção agrícola, Almería também produz milhares de toneladas de resíduos plásticos por ano, muitos dos quais acabam no mar.

Contudo, a transferência de água do Tejo não é suficiente para fazer face à crescente procura de agricultura em Almería. Nos últimos 40 anos, o volume de água que chega à cabeceira do Tejo diminuiu cerca de 40 por cento, segundo as estimativas, e continua a diminuir. Portanto, Almería depende cada vez mais da água do mar dessalinizada para irrigação.

Atualmente, o Governo reconhece que a situação é insustentável. Teresa Ribera, ministra da Transição Ecológica, pretende que Espanha cumpra os padrões europeus de qualidade e quantidade de água que entrarão em vigor em 2027, e sabe que isso só pode ser alcançado reduzindo a irrigação. Ao apresentar o plano hídrico quinquenal do país, Ribera reconheceu que os recursos hídricos estão em declínio e que muitas zonas de Espanha começam a enfrentar a desertificação.

“Neste contexto, os planos hídricos não podem continuar a apoiar o tipo de práticas que têm levado à sobreexploração dos aquíferos, à contaminação das águas subterrâneas e à deterioração dos nossos rios”, afirmou.

Mas, embora a agricultura responda por apenas três por cento do PIB e quatro por cento dos empregos, o setor agrícola tem considerável influência política. Quando Ribera anunciou a redução do volume de água que podia ser transferido do Tejo, houve criticas por parte do setor da agricultura.

“O problema é que a solução para a questão da água vai colocar qualquer governo em conflito com vários setores, como a agricultura, a hidroeletricidade e os promotores imobiliários”, explicou Miguel Ángel Sánchez, porta-voz da Plataforma de Defesa do Tejo.

“Madrid sabe que isto não pode continuar, mas não vão enfrentar o touro pelos cornos e são os governos regionais que têm autoridade sobre os planos hídricos”, afirmou também Gosálvez, que considera que a política agrícola comum da UE é parcialmente culpada por encorajar a agricultura intensiva que é prejudicial ao meio ambiente.

“A UE paga aos agricultores para plantarem mais, levando a uma superprodução, fazendo com que o preço de mercado mal cubra o custo de produção”, continuou.

“Precisamos de acordar para a realidade, simplesmente não há água suficiente para tamanha necessidade de irrigação. Os agricultores estão a cavar as suas próprias sepulturas”.

Fonte: RTP

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