Vinhos franceses: a ameaça do aquecimento global

Em França, desde 2005, a vindima no país foi iniciada 15 dias antes do previsto. Motivo? Alterações climáticas.

vinhas

Antes das oito horas da manhã, em meados de agosto, o sol já queimava a pele dos apanhadores de uva.

Na cidade de Murviel-lès-Montpellier, Joël Anthérieu e Edith Bez, donos da quinta do Clos d’Isidore começaram a colheita a 17 de agosto - bem antes do esperado.

«Normalmente, colhemos no início de setembro», diz Edith. «Mas este ano se tivéssemos esperado não haveria mais nada além de suco de uva», sublinha.

Não muito longe dali, na quinta de Régis Sudre, o cenário é o mesmo.

«Este ano colhemos antecipamos a vindima 15 dias. As temperaturas altas melhoram a qualidade das uvas, mas só até certo ponto. Depois estragam-se», diz o dono da Domaine Saint Julia.

Essa mudança no ciclo de produção tem como causa, segundo os produtores, especialistas e o governo francês, algo que o presidente americano Donald Trump tenta negar: eventos climáticos extremos provocados pelo aquecimento global.

Na região, algumas quintas colheram o Muscat a partir de 3 de agosto, e a colheita para o vinho branco começou oficialmente na região no dia 9 de agosto.

Datas nunca vistas antes. Nem mesmo em 2003, quando as temperaturas na Europa passaram dos 50°C - uma das mais fortes ondas de calor da história do Hemisfério Norte - as datas da colheita foram tão antecipadas.

E Languedoc não é a única região afetada. Praticamente em toda a França, passando pela Alsácia, Borgonha, Bordeaux, Jura, Vale do Loire, Vale do Ródano… em todas as regiões vitícolas, aconteceu o mesmo. Em algumas comunas de Champanhe a colheita começou a 26 de agosto ao invés de 8 de setembro, como estava previsto.

Segundo dados do Instituto Nacional de Investigação Agrícola (INRA), de França, desde 2005 a colheita da uva no país foi antecipada 15 dias por causa das alterações climáticas.

Por consequência, há mudanças significativas no sabor do vinho e na produtividade das vinhas. Este ano, em particular, a colheita foi historicamente a mais baixa desde 1945.

Segundo o Instituto de Estatística do Ministério da Agricultura francês, a forte e inesperada geada no começo da primavera e a forte seca no verão afetaram fortemente os vinhos franceses. Em comunicado publicado pelo Instituto, em setembro, ficava claro que «a produção do vinho deste ano dificilmente chegará a 37,2 milhões de litros, um nível 18% inferior ao de 2016».

Para Jean-Marc Touzard, diretor de investigação no INRA, as consequências do calor na qualidade final do vinho são muitas.

«Primeiro, colher quando está muito quente danifica as uvas. Então, esta maturidade inicial aumenta o nível de açúcar que define o grau de álcool da bebida final», explica. Em Languedoc, os vinhos aumentaram em média 1,5 o grau alcoólico nos últimos trinta anos, apenas por causa do clima.

O calor também diminuiu a acidez, um elemento-chave para a sensação de frescura tão apreciada nos vinhos brancos e rosés.

O calor extremo também perturba o desenvolvimento dos aromas e, portanto, o sabor do vinho. Segundo Touzard, o vinho tinto passa a ter mais aromas de geleia ou compota de frutas (fruta cozida) em detrimento do aroma característico de fruta fresca.

«Nós até observamos os efeitos do aquecimento global na cor do vinho, as bebidas estão cada vez mais claras», diz o especialista. Ou seja, nascem vinhos mais alcoólicos, menos ácidos e com novos perfis aromáticos - tudo isso os deixa com um gosto e textura diferentes de sua “personalidade original”».

O novo mapa do vinho

Um relatório publicado em 2009 pela Greenpeace diz claramente que, se as temperaturas aumentarem entre 4 a 6°C até 2100, «as vinhas tradicionais (como as mediterrâneas) podem desaparecer» e «pelo menos 1.000 quilómetros quadrados de vinhedos em todo o mundo vão deslocar-se para norte».

Em 2013, um estudo publicado nos EUA pela revista Nature Climate Change, dizia que a área agrícola europeia adequada para o cultivo da uva diminuirá 68% até 2050, devido ao aquecimento global e um novo mapa do vinho pode surgir.

Segundo um mapa previsto pelo INRA, se as previsões de alterações climáticas anunciadas acontecerem, nos próximos 50 anos o clima mediterrâneo do sul da França vai assemelhar-se ao clima do vale Hunter, na Austrália, onde o Shiraz produzido é considerado um dos melhores do mundo e os termómetros passam facilmente dos 45°C.

A região de Bordeaux conhecerá um clima equivalente ao clima da região do Porto, em Portugal e de Napa, no estado da Califórnia, nos EUA.

Os famosos vinhos de Bordeaux e de Champanhe encontrarão um novo lar e um clima propício ao norte do mapa, na Inglaterra.

Toda produção da Alsácia, Borgonha, Vale do Loire, Vale do Ródano passaria a produzir um vinho de caráter misturado que ficaria entre o vinho de Bordeaux e as suas produções normais.

Em suma, as alterações climáticas, além de anteciparem a vindima, estão já a colocar em risco a essência dos vinhos franceses. A noção de terroir, ou seja, uma zona tradicional de plantação onde cada tipo uva cultivada se adapta lentamente ao solo, ao clima e ao estilo de plantação, poderá ser completamente destruída.

Fonte: Exame 

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