Carlota Vaz Patto, Agrónoma de bata branca

Por: Rita Caré, Comunicadora de Ciência e estudante do Mestrado de Comunicação de Ciência  da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Aos seis ou sete anos descobriu que gostava muito de animais, mas que não queria trabalhar com eles, porque os imaginava a sofrer. “Se fosse veterinária ia ser uma tristeza”, exclama. “Nessa altura pintava-me agrónoma, mas de bata branca.”

Carlota Vaz Patto (40 anos), os seus cinco irmãos e os pais viam a TV Rural e gostavam principalmente dos programas sobre ovelhas, muito deles gravados em sua casa, em Gramaços, Oliveira do Hospital. “Fui daquelas pessoas que teve a sorte de conhecer o engenheiro Sousa Veloso. Ele fazia parecer que viver no campo era uma coisa muito importante. Mostrava as pessoas que faziam investigação e as que se dedicavam a melhorar as condições dos agricultores”.

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Carlota fez a terceira e a quarta classe no mesmo ano, conta a irmã Mariana, de 42 anos. O irmão Francisco, 45 anos, diz que “era simpática e alegre, como agora, e sempre teve muito boas notas”. Mariana diz ainda que era muito estudiosa e continuou a sê-lo quando foi para o liceu em Oliveira do Hospital”.

Com 17 anos e decidida a tornar-se agrónoma, Carlota “emigrou” para a capital para ir viver com Mariana e Francisco, que já estudavam em Lisboa. Mariana considera que a irmã se adaptou bem. “Fez logo amizades na faculdade”. Já Francisco crê que a irmã é um pouco tímida, mas faz um grande esforço por combater essa característica.

Em 1994, licenciou-se em Engenharia Agronómica com especialidade em Melhoramento de Plantas no Instituto Superior de Agronomia (ISA). “Dentro da nossa geração em Portugal, penso que a Carlota é a pessoa com a carreira mais coerente no âmbito do Melhoramento de Plantas”, diz Pedro Talhinhas, de 40 anos, seu colega desde o primeiro dia de aulas, há 22 anos.

Pedro frisa que durante o trabalho para a tese de final de curso, “Carlota mostrava uma grande resiliência e vontade de ir sempre um pouco mais além”. Carlota foi distinguida por ter sido a melhor aluna do Colégio de Agronomia da Ordem dos Engenheiros. “Não sendo uma pessoa extrovertida, tão-pouco os colegas a consideravam uma daquelas marronas chatas e vaidosas”, acrescenta Pedro.

Para além da sua dedicação à vida académica e profissional, ao longo da sua vida Carlota não prescindiu do lazer sobretudo no desporto e na música. “Isto de querer fazer muitas coisas, talvez seja como o meu pai que é o homem dos sete ofícios”, comenta Mariana.

Num vai e vem durante uma década

No fim da licenciatura, Carlota ganhou uma bolsa de mestrado para estudar no Centro Internacional Agronómico do Mediterrânico, em Espanha. Pedro Talhinhas conta que “Carlota zarpou para Saragoça e iniciou a sua vida cigana que a levou durante vários anos a Espanha, Holanda e Itália. A cada vinda de férias vinha um pouco diferente, mais aberta a diferentes perspectivas de ver o mundo”.
Carlota conta que em Saragoça, “tinha colegas de toda a zona mediterrânica e professores do mundo inteiro”. Eram apenas quatro raparigas entre 40 homens, dos quais 38 eram árabes e dois eram espanhóis. “Foi muito giro viver entre os árabes. Vivi entre pessoas de países e religiões muito diferentes. Foi interessantíssimo”.

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“Nessa altura, em 1994/1995, os marcadores moleculares começaram a estar na berra e começou a tentar explicar-se a base genética de muitas características quantitativas”. A investigadora explica que “no melhoramento em campo “semeiam-se muitas sementes com uma grande variabilidade para depois se seleccionarem as plantas que apresentam as melhores características. Escolhem-se as sementes dessas plantas e volta-se a semear. Novamente seleccionam-se as melhores plantas. Esse processo serve para se obter variedades com características mais produtivas, mais resistentes, etc.”. Na produção agrícola o principal factor é a quantidade, ou seja, a produtividade das culturas. Essa é uma característica quantitativa, porque depende de muitos factores e não apenas de um. A utilização de marcadores moleculares (que permitem localizar genes que controlam esse tipo de características) e da genética quantitativa permite maior rapidez e eficiência do melhoramento de plantas, porque se diminui a complexidade da selecção. “Mas mais depressa não quer dizer de um dia para o outro, está-se a falar de anos”, esclarece.

Carlota decidiu ir para Córdoba fazer a tese de mestrado para estudar características quantitativas de interesse em fava, começando assim a utilizar ferramentas que facilitavam o conhecimento para melhorar a qualidade, a produção e a saúde das plantas.

A investigadora defende que o desenvolvimento e “a utilização destas tecnologias já não é uma coisa assim tão cara e deixa de estar limitada a umas quantas empresas com capacidade económica enorme”. A sua ideia é conseguir manter o enorme conhecimento dos melhoradores tradicionais para a selecção em campo e conjugá-lo com estas novas tecnologias. “Ninguém tinha ainda dado o passo para fazer essa ligação”.

Em Saragoça, Carlota contactou com Rients Niks, investigador holandês, e depois já em Córdoba, com Diego Rubiales, investigador espanhol. Ambos especialistas em patologias de plantas. Os dois desafiaram-na a aprofundar o estudo da “evitação”, uma característica típica de uma cevada selvagem que evita ser atacada por um fungo que provoca a ferrugem dos cereais. Candidatou-se a uma bolsa portuguesa, da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e fez o doutoramento sobre este tema no CSIC-Instituto de Agricultura Sostenible, em Córdoba, e na Universidade de Wageningen, Holanda. Foi assim que passou “de uma cidade com uma cultura brutal, para uma aldeiazinha global, que tem gente do mundo inteiro. Foi muito giro viver temporariamente na Holanda. É muito bom para trabalhar, aprendi muito”, comenta.

Carlota extraiu ADN de cevada, caracterizou-o com marcadores moleculares e juntou esses dados genéticos aos de análise microscópica. Passou meses a trabalhar ao microscópio, oito horas por dia, a contar fungos nas folhas de cevada. “Os primeiros três meses foram para o lixo”, porque partiram de um pressuposto incorrecto. A perda de tanto tempo de trabalho árduo e a nova passagem pelo microscópio durante meses fizeram com que passasse por um processo ao qual chama de “desenvolvimento de carácter ao microscópio”, tendo desenvolvido a paciência e a tolerância. Ao fim de quatro anos na Holanda, deixou o trabalho pronto para ser aplicado ao melhoramento da cevada.

Não querendo ficar no norte da Europa, Carlota rumou ao sul para Bolonha, em Itália, para se dedicar ao conhecimento de milho. A sua ideia não era voltar naquela altura para Portugal, mas iniciou uma colaboração com Pedro Fevereiro, que dirige o Laboratório de Biotecnologia de Células Vegetais do ITQB – Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em Oeiras, e no qual ainda hoje é investigadora auxiliar. “Desde logo me impressionei com a qualidade do seu currículo científico”, comenta Pedro Fevereiro, acrescentando também que “a Carlota é uma pessoa franca, sem subterfúgios e humanamente competente”. Nessa altura a investigadora candidatou-se novamente à FCT, tendo recebido financiamento para a sua investigação. Foi um tempo que passou a “saltitar” entre Itália, Portugal e Córdoba.

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Na senda do melhoramento do milho Português

“O Pedro Fevereiro perguntou-me se eu não queria trabalhar com variedades tradicionais de milho que o Silas Pego tinha desenvolvido”. Carlota achou “uma ideia genial”. A investigadora conhecia o trabalho de Silas Pego na antiga Estação Agronómica Nacional (EAN) desde a faculdade. Havia imensos melhoradores óptimos da geração antiga, mas que desconheciam as vantagens das técnicas moleculares. Silas Pego disponibilizou material que seleccionou ao longo de várias décadas e estava sequioso que alguém trabalhasse com “a menina dos olhos dele”, explica Carlota entusiasmada.

Nessa altura iniciou uma colaboração com Pedro Moreira, professor na Escola Superior Agrária de Coimbra (ESAC), um antigo colega dos tempos da faculdade. Pedro ficou encarregue dos ensaios de campo em Coimbra. Essa equipa caracterizou a diversidade molecular e agronómica dos milhos desenvolvidos por Silas Pego e depois a qualidade para produzir broa.

Os agricultores portugueses “não são nada burros”, exclama a investigadora. Eles não abdicaram das características de qualidade para a panificação quando apareceram os milhos híbridos com grande produtividade, porque perceberam que esses milhos não tinham características de qualidade suficiente para fazer pão. “Portanto, usavam esses híbridos para a alimentação animal, mas para a produção de pão mantiveram as suas variedades tradicionais”.

Actualmente, a equipa de Carlota dedica-se mais ao estudo genético responsável pela qualidade. No caso do milho para broa existem dois tipos: “A qualidade tecnológica de produção de pão (viscosidade, volume do pão, entre outras), da responsabilidade dos investigadores do Instituto Nacional de Recursos Biológicos (INRB), e a qualidade de características mais finas, como aromas e sabores, estudada com investigadores da análise química do ITQB”.

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Carla Brites, da Unidade de Tecnologia Alimentar do INRB, colabora na qualidade alimentar dos milhos, desde 2004. Carla explica que a persistência de Carlota é essencial para implementar um programa de melhoramento, cujo impacto só é visível ao fim de algumas décadas. Carla diz que “numa reunião que se realizou em 2011 em Coimbra, alguns produtores de milho regionais manifestaram o receio de todo o nosso trabalho vir a ser comprometido, ou por falta de verbas que inviabilizam a continuidade, ou por conflito de interesses com as multinacionais do sector”. A investigadora ficou convencida que Carlota conseguiu entusiasmá-los e convencê-los que o programa de melhoramento só dependeria do seu esforço conjunto.

Pedro Fevereiro diz que “apesar das dificuldades científicas, financeiras e infra-estruturais, a Carlota tem conseguido obter resultados relevantes e ainda apoiar a formação o desenvolvimento científico de muitos investigadores.

Os estudantes de Carlota parecem ser unânimes: a sua orientadora é muito competente e pró-activa, o que beneficia o trabalho de todos além-fronteiras. Pedro Moreira, a terminar a tese de doutoramento, diz que a sua orientadora tem espírito crítico e criativo, é boa pedagoga, sabe escolher a sua equipa e promove o espírito de união.

Pedro Talhinhas considera que teria sido muito mais fácil para Carlota ter sucesso se tivesse optado por áreas científicas mais na moda e que potencialmente dariam mais e melhores publicações. “A nível profissional, a Carlota luta pelos seus objectivos e convicções mesmo que isso signifique insucessos, não fazendo concessões a facilitismos e atalhos simplificadores”.

Segundo Carlota Vaz Patto, o mais importante na investigação é uma pessoa não se fechar e funcionar com redes de colegas estrangeiros. É “importante nunca fechar a porta a nenhuma oportunidade de colaboração. As colaborações não caem do céu e cultivam-se. Isto é uma cadeia. Temos de dar boa imagem em momentos chaves e aproveitar as oportunidades certas. Não desistir nunca”.

*Artigo originalmente publicado na revista AGROTEC nº4 (setembro de 2012)

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