Setores do leite e carne tem que «olhar internamente» e reestruturar-se

O docente do IPAM especialista em 'marketing' agroalimentar Rui Rosa Dias reconhece as dificuldades na base da manifestação de segunda-feira dos produtores de leite e carne, mas defende que cabe ao setor «olhar internamente» e reestruturar um modelo de governação esgotado.

leite

«As reivindicações fazem sentido apenas na lógica do produtor - e se fosse produtor juntar-me-ia à manifestação e levaria o meu trator - mas não fazem sentido nenhum na restante cadeia de valor, que é muito mais longa e complexa do que só produzir leite», afirmou Rui Rosa Dias.

Produtores portugueses de leite e carne manifestam-se segunda-feira frente à Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, em Matosinhos, Porto, «em defesa da produção nacional» e contra as «práticas comerciais abusivas» da grande distribuição. 

Organizada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e pela Associação Portuguesa de Produtores de Leite e Carne (APPLC), em conjunto com outras organizações da lavoura, a iniciativa promete ser «a maior alguma vez realizada pelo setor em Portugal» e prevê ainda protestos junto a dois hipermercados. 

O protesto segue-se à manifestação de suinicultores realizada na sexta-feira, em Lisboa. 

Para o docente do IPAM - The Marketing School, do Porto, Portugal é «extremamente eficiente na produção de leite, mas essa eficiência chegou a um limite tal em que não é possível baixar mais custos continuando com o mesmo modelo de governação da estrutura da fileira». 

«Temos fornecedores de matérias-primas, produtores de leite, recolhedores de leite, cooperativas agrícolas, indústria transformadora, distribuição e consumo. É uma cadeia de valor muito extensa e em cada elo desta cadeia há uma margem, porque toda a gente tem que ganhar dinheiro», explicou. 

Convicto de que «estão 'players' [intervenientes] a mais nesta cadeia de valor», Rui Rosa Dias admite que «o produtor tem razão quando diz que o preço à produção nunca esteve tão baixo», mas defende que «é preciso, internamente, o setor olhar para si próprio e reestruturar o modelo de governação», não passando a solução pelo regresso às quotas, por subsídios públicos ou pela intensificação da produção. 

«O que está em cima da mesa é a questão sociológica do consumo: o consumo do leite líquido está a cair, é um mercado maduro e em declínio há já cinco/seis anos porque não é possível fazer com que o consumidor beba mais leite. O que é preciso é que a indústria, os produtores e a distribuição se coordenem e sincronizem a cadeia de valor para fazer face a este excesso de oferta que a procura nacional não está a absorver», sustenta. 

E, não sendo a exportação atualmente uma alternativa - sobretudo num contexto marcado pelo embargo russo às exportações de produtos lácteos da União Europeia e pelo declínio do consumo de leite inteiro na China -, o docente universitário defende que «têm que ser os operadores a conquistar quota de mercado e a posicionar as suas marcas», apostando na inovação e na Investigação e Desenvolvimento (I&D) para encontrar «formas alternativas de dar valor à matéria-prima». 

Para ilustrar a «falta clara e nítida de uma aposta em inovação» que considera haver atualmente no setor leiteiro nacional, Rui Rosa Dias refere o facto de 55% do leite produzido ser para consumo e só os restantes 45% servirem de base a produtos derivados do leite com mais valor acrescentado, como o queijo, a manteiga, o iogurte e as sobremesas lácteas. 

«O setor tem que aprender a reestruturar-se e a reposicionar-se neste novo ambiente. Mas esse é um trabalho dificílimo, porque estamos a falar de antropologia, de sociologia e de psicologia, tudo áreas que fogem à área da gestão tradicional e do modelo de governação que temos no setor leiteiro», considerou. 

Para o docente universitário - que durante sete anos foi diretor de 'marketing' da Agros e é autor do livro "Marketing Agroalimentar" - «mudar isto passa pela indústria e por estruturas setoriais de cúpula, como a Federação Nacional das Cooperativas de Leite e Laticínios (Fenalac) ou a Associação Nacional dos Industriais de Laticínios (ANIL), que poderiam liderar uma situação de pressão junto da indústria». 

Já ao Governo português - a quem recorda que «estão muitas famílias em causa, porque o setor leiteiro emprega muita gente» - Rui Rosa Dias entende que «não restará outra alternativa senão discutir e seguir os pares da União Europeia na discussão de como apoiar o setor».

Adicionalmente, o executivo «pode moderar e aconselhar através da plataforma de entendimento entre a indústria e a distribuição que já foi criada para melhorar o funcionamento da cadeia de valor». 

Certo é, na sua opinião, que «não são os impostos dos cidadãos nem o consumidor que têm que pagar» a sustentabilidade de um setor que «tem que se reestruturar, olhar para o mercado e ajustar toda a sua estrutura às novas dinâmicas e variáveis».

Fonte: Lusa

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